sábado, 24 de novembro de 2012

LINGUAJAR CEARENSE - O BOI ZEBU E AS FORMIGAS



O Linguajar Cearense
(Josenir A. de Lacerda)

Todo poeta de fato
É grande observador
Seja da rua ou do mato
Seja leigo ou professor
Faz verdadeira pesquisa
Vasto estudo realiza
Buscando essência e teor

Por esse nato talento
Na hora de versejar
Busca o tema e o momento
Visa o leitor agradar
Não sente conformação
Se não passa a emoção
Que dentro do peito está

Neste cordel-dicionário
Eu pretendo registrar
O rico vocabulário
Da criação popular
No Ceará garimpei
Juntei tudo, compilei
Ao leitor quero ofertar

Se alguém é desligado
É chamado de bocó
Broco, lerdo e abestado
Azuado ou brocoió
Arigó e Zé Mané
Sonso, atruado, bilé
Pomba lesa e zuruó

Artigo novo é zerado
Armadilha é arapuca
O doido é abirobado
Invencionice é infuca
O matuto é mucureba
Qualquer ferida é pereba
Mosquito grande é mutuca

Quem muito agarra, abufela
Briga pequena é arenga
Enganação, esparrela
Toda prostituta é quenga
Rapapé é confusão
De repente é supetão
Insistência é lenga-lenga

Qualquer tramóia é motim
Solteira idosa é titia
Mosquitinho é mucuim
Recipiente é vasia
Meia garrafa é meiota
O exibido é fiota
Travessura é istripulia

Bebeu muito é deodato
Brisa leve é cruviana
O sujeito otário é pato
Cigarro curto é bagana
Fugir é capar o gato
O engraçado é gaiato
Quem vai preso tá em cana

Ter mesmo nome é xarapa
Muito junto é encangado
Água com açúcar é garapa
Cor vermelha é encarnado
Muita coisa dá mêimundo
Sendo Mundim é Raimundo
Valentão é arrochado

A rede velha é fianga
Com raiva é apurrinhado
Careta feia é munganga
Baitinga é o mesmo viado
O bom é só o pitéu
Bajulador, xeleléu
Sem jeito é malamanhado

Bater fofo é não cumprir
tecetera é escambau
Sujar muito é encardir
Quem acusa, cai de pau
Confusão é funaré
Carta coringa é melé
Atacar é só de mau

Qualquer botão é biloto
Mulher difícil é banqueira
Pequenino é pirritoto
Estilingue é baladeira
Qualquer coisa é birimbelo
Descorado é amarelo
Sem requinte é labrocheira

Um perigo é boca quente
Porco novo é bacurim
Atrevido é saliente
Quem não presta é corja ruim
Dedo duro é cabuêta
A perna torta é zambêta
Coisinha pouca é tiquim

Parteira era cachimbeira
Dar mergulho é tibungar
Tem cucuruto, moleira
Olhar demais é cubar
Tem ainda ternontonte
Que vem antes do antonte
Ver de soslaio é brechar

Quem briga bota boneco
Sem valor é fulerage
Copo pequeno é caneco
Estrada boa é rodage
O tristonho é capiongo
Galo ou inchaço é mondrongo
E a ralé é catrevage

O velho ovo estrelado
É o bife do oião
Nervoso é atubibado
Repreender é carão
O zarôlho é caraôi
Enviezado, zanôi
Inquieto é frivião

A perna fina é cambito
Dar o fora é azular
Muito magrelo é sibito
Pisar manco é caxingar
Rede pequena é tipóia
Tudo bem é tudo jóia
Fazer troça é caçoar

A expressão 'dá relato'
Que atinge mais de légua
'Tá ca peste!' 'Só no Crato!
'Tá lascado!' e 'Aarre égua!'
'Corra dentro!' ' Qué cirmá? '
'É de rosca? 'Éé de lascar! '
'Vôte!' 'Ôxente! 'Isso é paid'égua!'

Se é muito longe, arrenego
Que Deus do céu nos acuda
É pra lá da caixa prego
Lá no calcanhar do juda
Nas bimboca ou cafundó
Nas brenha ou caixa bozó
Onde o vento a rota muda

Se é cheia de babilaque
É ispilicute ou dondoca
Ligeiro é 'que nem um traque'
Agachado é tá de coca
Sem rumo é desembestado
O faminto é esguerado
Bolha na pele é papoca

Chamuscado é sapecado
Nuca, cangote é cachaço
Meio tonto é calibrado
A coluna é espinhaço
Se está adoentado
Tá como diz o ditado:
'da pucumã pro bagaço'

Cearense tem mania
Chama todo mundo Zé
Zé da onça, Zé de tia
Zé ôin ou Zé Mané
Zé tatá ou Zé de Dida
Achando pouco apelida
Um bocado de Zezé

Fazer goga é gaiofar
O que é longo é cumprissaio
Provocar é impinjar
Toda pilôra é desmaio
Salto ligeiro é pinote
Bando, turma é um magote
Cesto sem alça é balaio

A comidinha caseira
Tem fama no Ceará
Tipicamente brasileira
Faz o caboco babar
No bar do Mané bofão
Pau do guarda, panelão
O cardápio vou citar:

Sarrabulho, panelada
Mucunzá e chambari
Tripa de porco, buchada
Baião de dois com piqui
Tem pão de milho e pirão
Carne de sol com feijão
Tijolo de buriti

Quem é ruivo é fogoió
O tristonho é distrenado
Tornozelo é mocotó
Cheio de grana, estribado
Jarra de barro é quartinha
O banheiro é a casinha
Sem saída, 'tá pebado'

A bebida e o seu rol
No Ceará todo habita
A fubuia e o merol
A truaca e a birita
Amansa sogra ou quentinha
Engasga gato, caninha
A meropéia e a mardita

O picolé no saquinho
Aqui se chama dindin
Se é o dedo menorzinho
É chamado de mindin
Riso sonoro é gaitada
Confusão é presepada
Atrevido é saidin

Papo longo e sem valor
É 'miolo de pote'
Muito esperto é vívido
Adolescente é frangote
Soldado raso é samango
A lagartixa é calango
O tabefe é cocorote

A lista é quase sem fim
Não cabe num só cordel
Tem alpercata, alfinim
Enrabichada e berel
Chué, baé, avexado
Bãe de cúia, ôi bribado
Quebra-queixo e carritel

Tem visage, sarará
Tem bruguelo e inxirido
Rabiçaca e aluá
Ispritado e zói cumprido
Bunda canastra, lundu
Dona encrenca, sabacu
Bonequeiro e maluvido

O cearense é assim:
Dá cotoco à nostalgia
A tristeza leva fim
Na cacunda dá euforia
dá de arrudei na carência
Enrola a sobrevivência
e embirra na alegria

                                                         
Josenir ocupa Cadeira nº 3 da 
Academia dos Cordelistas do Crato.



O BOI ZEBU E AS FORMIGAS
(Patativa do Assaré)

Um boi zebu certa vez
Moiadinho de suó,
Querem saber o que ele fez
Temendo o calor do só
Entendeu de demorá
E uns minuto cuchilá
Na sombra de um juazêro
Que havia dentro da mata
E firmou as quatro pata
Em riba de um formiguêro.

Já se sabe que a formiga
Cumpre a sua obrigação,
Uma com outra não briga
Veve em perfeita união
Paciente trabaiando
Suas foia carregando
Um grande inzempro revela
Naquele seu vai e vem
E não mexe com mais ninguém
Se ninguém mexe com ela.

Por isso com a chegada
Daquele grande animá
Todas ficaro zangada,
Começou a se açanhá
E foro se reunindo
Nas pernas do boi subindo,
Constantemente a subi,
Mas tão devagá andava
Que no começo não dava
Pra de nada senti.

Mas porém como a formiga
Em todo canto se soca,
Dos casco até a barriga
Começou a frivioca
E no corpo se espaiando
O zebu foi se zangando
E os cascos no chão batia
Ma porém não miorava,
Quanto mais coice ele dava
Mais formiga aparecia.

Com essa formigaria
Tudo picando sem dó,
O lombo do boi ardia
Mais do que na luz do só
E ele zangado as patada,
Mais força incorporava,
O zebu não tava bem,
Quando ele matava cem,
Mais de quinhentas chegava.

Com a feição de guerrêra
Uma formiga animada
Gritou para as companhêra:
Vamo minhas camarada
Acaba com os capricho
Deste ignorante bicho
Com a nossa força comum
Defendendo o formiguêro
Nos somos muitos miêro
E este zebu é só um.

Tanta formiga chegou
Que a terra ali ficou cheia
Formiga de toda cô
Preta, amarela e vermêa
No boi zebu se espaiando
Cutucando e pinicando
Aqui e ali tinha um moio
E ele com grande fadiga
Pruquê já tinha formiga
Até por dentro dos óio.

Com o lombo todo ardendo
Daquele grande aperreio
zebu saiu correndo
Fungando e berrando feio
E as formiga inocente
Mostraro pra toda gente
Esta lição de morá
Contra a farta de respeito
Cada um tem seu direito
Até nas leis da naturá.

As formiga a defendê
Sua casa, o formiguêro,
Botando o boi pra corrê
Da sombra do juazêro,
Mostraro nessa lição
Quanto pode a união;
Neste meu poema novo
O boi zebu qué dizê
Que é os mandão do podê,
E as formiga é o povo.


O PLANTADOR DE MILHO - O CORONEL AVARENTO OU O HOMEM QUE A TERRA RECUSOU














O Plantador de Milho
   Daudeth Bandeira


Sou eu caboclo da roça
Criado dentro da mata
Nunca calcei um sapato
Nunca usei uma gravata
Moro perto da cidade
Mas pra falar a verdade
Só vou lá de feira em feira
Ou quando há precisão
De batizar um pagão
Ou buscar uma parteira

No dia que registrei
O meu filhinho mais novo
O juiz estava nervoso
Brigando no meio do povo
Me chamou de maltrapilho
Sujo, plantador de milho
E disse mais uma piada
Dessas que a boca não cabe:
Matuto pobre só sabe
Fazer menino e mais nada.

O juiz não tinha filhos
Que enfeitassem sua vida
Eu conhecia a história
E fui direto na "ferida":
O senhor está zangado,
Tem dez anos de casado
E a mulher não tem um filho;
A sua comida fina
Não contém a vitamina
Que há na massa do milho.

A minha família é grande
Dez filhos e a mulher.
Sua família é pequena
Mas é porque você quer.
A sua mulher lhe embroma
Quase todo dia toma
Anticoncepcional
Lhe vicia em novela
Dorme tarde e faz tabela
E esquece do "principal".

Ouvi o senhor dizer
Que está gastando por mês
Mas de dez salários mínimos
Só com perfume francês
Diz que a vida é uma bomba
Que foi não foi leva tromba
Com mercadoria falsa
Comprar perfume estrangeiro
É pra quem possui dinheiro
Nos quatro bolsos da calça

Caro doutor, lá em casa
Ninguém nem conversa em luxo
A fora uma simples roupa,
O resto é encher o bucho
Não acostumei meu povo
Exigir sapato novo
Para as festas de São João
Ao invés de um colar de ouro
Compro a rabada de um touro
Pra se comer um pirão.

Lá ninguém fala em perfume,
O que há na minha casa
É cheiro de carne assada
Pingando em cima da brasa
Minha cabocla Maria,
Gorda, disposta e sadia,
Pra toda vez que eu quiser
Botar fogo na geléia
Para isso a minha "véia"
É mulher, sendo mulher.

Como, é galinha caipira
E não galeto de granja
Ao invés de coca-cola
Tomo suco de laranja
Com rapadura de mel.
E escute aqui, bacharel,
Conversa longa me atrasa.
Quer ver a mulher Ter filho?
Bote um plantador de milho
Pra dormir na sua casa.
                      


O CORONEL AVARENTO OU O 
 HOMEM QUE A TERRA RECUSOU
        Josué Gonçalves

Oh! Minhas musas do Olimpo,
Peço a vós, inspiração.
Iluminem a minha alma,
Pra narrar com precisão
Uma história muito triste
De uma seca que persiste
Na caatinga do sertão.

Ventos supremos bravios,
Varrendo Areia Dourada,
Na negra manhã de maio,
Com a rua poeirada.
Essa cidade Paulista,
Areia Dourada lista,
No mapa, bem na beirada.

O sol estava por vir,
Os galhos eram vergados,
Sentindo a força dos ventos,
Uns eram arrebentados.
Ao som da verde folhagem,
Num ritmo muito selvagem,
Rangiam, sendo açoitados.

O quitandeiro Cirino,
Que cedo sempre acordava,
Naquela manhã sombria
Também as caras não dava.
Sentei na escada na frente,
Da igreja São Clemente,
Onde o sininho tocava.

Tufos de areia vermelha,
Como nuvens, flutuavam,
Voando tal vendaval,
Nas ruas continuavam.
Puxei o meu colarinho,
Protegendo com carinho,
Os olhos que lagrimavam.

Na escada à direita
Surgiu um velho barbudo:
Alto e coluna curvada,
Trajado de um sobretudo,
Na mão um forte cajado.
Veio sentando ao meu lado,
Tentando encontrar escudo.

Sendo o velho um forasteiro,
Eu, menino adolescente,
Não temi a sua presença;
Aceitei naturalmente,
Como pessoa normal,
E, naquele temporal,
Encarei-o bem de frente.

Disse: — Bom dia, garoto!
Voltando-se para mim.
Cobrindo o rosto, seguiu:
— A ventania é ruim,
Terra batendo nos olhos,
Entrando até nos refolhos,
Incomoda muito, enfim.

— Quer saber? Não vai parar!
Todo o tempo em ventania,
Levantando mais poeira,
E, lá pro final do dia,
Fustigando a folhagem,
É que vem a boa aragem,
Pôr um termo na folia.

Ouvia tudo em silêncio,
E com ele concordava,
Mas fiquei logo intrigado,
Pois a mente formigava,
Pra saber, de antemão,
Sobre o homem do sertão
Que comigo conversava.

Respirei fundo e bradei:
— Meu senhor, donde vem vindo,
Se aqui, eu nunca lhe vi? —
Respondeu-me o velho rindo:
— Dum lugar, daqui distante,
Igual o inferno de Dante,
Que me lembro até dormindo.

— E pra onde o senhor vai? —
Insisti em perguntar
— Vou pra longe, muito longe,
Onde a vida me levar —
Conhecendo muita gente,
Irei seguindo em frente,
Até a viagem terminar.

Me responda, meu senhor:
— Por que vive nessa lida,
Como nômade sem rumo,
Mendigando até comida,
Se o senhor não é um gato,
Dos que vivem lá no mato,
E que tem mais duma vida?

O velho alisou a barba,
Sorriu estranho, e falou:
— Vivo correndo no mundo,
Minha alma me ordenou:
“Vai peregrinar na vida,
Sem dinheiro e sem guarida,
Com a roupa que restou.”

“Vai à busca do sentido,
Da existência dessa vida”
Explicou o amigo velho,
Nos degraus da bela ermida.
— Creio que já encontrou,
E também já se cansou,
Dessa busca sem medida?

E puxou um cobertor,
Para proteger o peito,
Olhou-me bem nos meus olhos,
Deixando-me até sem jeito.
Falou-me com afeição:
— Menino, preste atenção,
Vejo-o como bom sujeito!

Inspirou-me confiança,
Sorrindo como arlequim.
A quitanda do Cirino
Inda fechada pra mim,
O vento correndo solto,
O velho, no canto envolto,
Soltou a língua por fim.

— Pra você eu vou contar
Dessa vida de migrante
Do que vi, do que aprendi,
Como um simples retirante,
Na busca do seu tesouro,
Sabendo que tudo é ouro
Pra os olhos de um viajante.

Disse a ele, ansioso:
— Conta, conta, por favor!
Me lembrei da minha avó,
Que, em história de amor,
Aventura com mistério,
De paixão ou de adultério,
Minha avó era um terror.

O velho suspirou fundo
A garganta preparou,
Puxando pela memória,
A história começou:
— Sucedeu em trinta e dois,
A seca matava os bois,
A miséria desandou.

Em tempo de seca brava,
Segundo disse o poeta,
A “Canícula dardejante”
Igual a fogo na seta —
É quem “escaldava a terra”.
Calango fugia pra serra,
Correndo como um atleta.

Que tempos cruéis aqueles,
Triste para os nordestinos,
Que abandonavam as terras,
Levando a pé os meninos.
Retirantes flagelados,
E muitos esfomeados,
Indo às mãos dos cretinos.

Nas terras do Cariri,
Ocorreu grande tragédia,
Consequência dessa seca.
Que foge de qualquer rédia,
Nas terras da caatinga,
Que mandou a Jacutinga
Pra lista da enciclopédia.

A grande ambição do homem,
Aos fortes enfraquece;
Egoísmo desmedido,
Aos corações endurece;
Obsessão com usura,
Para os homens deu clausura,
Onde a alma lá perece.

Coronel José dos Reis,
Grande latifundiário,
Nos confins do Cariri,
O grande proprietário,
Da maior gleba de terras,
Inclusive até as serras,
Nas mãos dum só usuário.

Nas terras de José Reis,
Os açudes da região,
Concentravam todos lá.
Ele não abria mão,
Nos tempos de estiagem,
O homem tinha coragem
De negar água ao irmão.

Comentam na região,
Na boca dos sertanejos,
Que a posse dessas terras
Era fruto de despejos,
E de vendas duvidosas,
Atitudes nada honrosas,
Diz assim nos rumorejos.

A terra pertence a Deus,
Posse, poder e ambição,
Diz respeito ao Coronel.
Homem mau sem coração,
Do tipo sem sentimento,
Extremamente avarento,
Severo e sem compaixão.

Por ser bastante avarento,
Sempre evitava gastar.
Carne seca com farinha
Não comia no jantar.
Mesquinhez e crueldade,
Fazia a infelicidade,
No dia-a-dia no lar.

Sua esposa e o seu filho,
A ele se acostumavam,
Os casuais flagelados
Nordestinos, que chegavam,
Bem famintos e sedentos,
Procurando mantimentos,
Com ele nada ganhavam.

Jamais teve piedade,
Do flagelado com fome
Com criança no cangote,
Agora tinha um nome,
Chamava-se retirante,
Vivendo como errante,
Guardando a dor no abdome.

Vendiam tudo que tinham
Ao Coronel desalmado.
O preço dava vergonha.
Com olho grande, o safado
Comprava todas as terras.
E usava as motosserras,
Pra tudo ficar cercado.

A vida do Coronel,
Lá na sede da fazenda,
Era só a sua família,
Sua terra, sua renda.
Amava a mulher Teresa,
O seu filho, com certeza,
Também a sua vivenda.

Daniel, o seu herdeiro,
Chegou à adolescência.
Estava botando corpo,
Bom rapaz de consciência,
Que ao pai nada puxou,
Mas que sempre respeitou,
Não faltando obediência.

Aos domingos ia à igreja,
Na cidade Cariri,
Sobre o cavalo alazão.
Nas sombras do alicuri,
As donzelas suspiravam,
Quando lhe viam acenavam
Não ligando em dar “piti.”

José Reis orientava
O seu filho para herdeiro.
Mostrava as terras amadas,
No percurso costumeiro,
Nas manhãs ao sol nascer,
Cavalgando para ver
Toda a terra no roteiro.

Medindo e examinando
A terra e a criação,
Cobrindo com olho grande
A cada palmo de chão,
Vistoriando as reservas
D’água e de muitas ervas.
Nada fugia à visão.

Dizem: “Que quem busca acha”.
José Reis achou pegadas
Bem nas margens do açude,
De quem andou nas beiradas.
De bravo, o homem rugia,
Porque nunca admitia
Que águas fossem levadas.

— Condenados do Diabo,
Minha água, estão roubando!
Invadem as minhas terras,
Como macacos em bando.
Mas, na calada da noite,
Vou preparar um pernoite,
Pra quem está me furtando.

Nas outras manhãs seguintes,
José Reis, já convencido:
As pegadas aumentaram,
Ficou tão enraivecido,
Que jurou não descansar:
— Dure o tempo que durar,
Mas eu não serei vencido.

Era domingo de ramos!
Devotos da região,
Com os ramos de palmeiras,
Entravam cedo em ação.
Partindo em romaria,
Crianças, em gritaria,
Corriam pelo areão.

Iam chegando à igreja
Do Cariri do sertão,
Cidade a pouca distância,
Saindo pelo estradão,
De manhã ao sol raiar,
Caminhando devagar,
Assoviando uma canção.

Tinha missa e depois festa,
Todo mundo bem trajado,
Vindo de todo lugar,
Pra o festejo esperado.
Daniel e a mãe Tereza,
Sempre assíduos com certeza,
Aguardavam o feriado.

Tereza quando criança,
Feliz com os pais do lado,
Sem idade pra casar,
Não teve um namorado.
Foi entregue a José Reis,
Mas só tinha dezesseis,
De idade, completado.

Mesmo depois de casada,
Não perdeu a sua fé,
Jamais perdia uma missa.
Inda que andasse a pé,
Dia santo era sagrado,
Levava o seu filho amado,
Sempre depois do café.

— Daniel, filho, levante,
A mãe o chamava assim —
Hoje nós vamos à missa.
— Sim, mamãe, nós vamos, sim.
Mas o pai se levantou,
E Tereza se espantou:
— Você vai à missa enfim?

— Mulher, você pode ir,
Não é que eu seja altruísta,
Mas meu santo não combina,
Com aquele comunista.
Muito jovem pra ser padre,
Fala mais do que comadre
Em discurso feminista.

Meu filho, faça um favor,
Diz a Pedro Cartucheira,
Morador lá da cidade,
Que não importa a maneira,
Mas venha até a fazenda,
Pois tenho uma encomenda
Lá no pé da ribanceira.

— Meu papai me diga lá,
Esse Pedro Cartucheira,
Não é Pedro Carabina?
— Filho, deixe de besteira!
Pois não é tudo espingarda?
Eu preciso de um guarda
Vigiando a ribanceira.

O coronel foi pra fora,
Pensando na cartucheira,
Carabina e o jagunço.
Depois, entrou na cocheira,
Pra selar os dois cavalos,
Esquecer dos seus entalos,
E pensar na ribanceira.

O nome do seu jagunço,
Ele nunca falou certo.
Não dava o braço a torcer,
Julgava-se o mais esperto,
Saindo pela tangente,
Com a cara de demente,
E um olho entreaberto.

Selou então os cavalos,
Em cada sela um cantil,
Apinhado de água fresca,
Debaixo de um céu anil,
Saiu Tereza elegante,
Com seu jeito cativante,
E o Daniel pueril.

— Vão com Deus — desejou Reis,
Que ficou em pé olhando,
Enquanto eles se afastavam.
De tudo estava gostando,
Se não fossem as pegadas,
Das tais pessoas safadas,
Ele estaria cantando.

O sol castigava a terra
Deixando-a ressecada,
Num verdadeiro braseiro.
Toda planta era queimada,
Mas Coronel com açude,
Mesmo sem “Deus me ajude”,
Não precisava de nada.

Bandos de pombas voando,
As pombas de arribação,
Dançando num céu azul,
Mudando de direção,
Num bailado gracioso,
Que, de tão maravilhoso,
Alegrava o coração.

As pombas, voando raso,
Pousaram todas na margem,
Beirando as águas barrentas,
Como se fosse miragem.
Milhões de asas batendo,
Na beira d’água bebendo,
Aquele bando selvagem.

Também pousavam graúnas,
Nas margens se arrebanhavam
Numa algazarra danada,
Na água fresca banhavam.
Cantos canoros festivos,
Trinados, repetitivos,
Enquanto se refrescavam.

Porém tem o lado feio,
Que aflui de todo canto,
Centenas de esfomeados
Aparecem como encanto:
Gatos bravos, gaviões,
Cobras e camaleões,
Ratos, e mais outro tanto.

Sem piedade atacando
Em luta de vida e morte,
Começa a carnificina.
Só as graúnas têm sorte.
As pombas de arribação,
Com graça e disposição,
Conservavam o belo porte.

Há poucos passos dali,
Na sombra do juazeiro,
O Coronel matutava,
Esperando o bandoleiro.
Bateram lá na porteira.
Reis pegou a cartucheira,
Percebendo o cangaceiro.

Era Pedro Carabina,
Que atendia ao chamado:
— Coronel, as suas ordens!
Recebi o seu recado.
— Eu lhe peço meu amigo,
Escorrace o inimigo,
Pois estou sendo roubado.

José dos Reis transmitiu,
Para o agente da morte,
As devidas instruções,
E perguntou com voz forte:
— Entendeu, Pedro Espingarda?
Você fique já de guarda,
Cumpra a lei aqui no norte.

— Coronel, preste atenção!
O meu nome é Carabina.
Colocado no batismo,
Lá na terra Jacobina,
Mato bravo e espinhoso,
Que até mesmo o tinhoso
Lamenta da sua sina.

— Carabina, espingarda,
Faz alguma diferença?
Não é tudo a mesma coisa?
Oculte a sua presença,
Passe fogo no primeiro,
Da sombra desse umbuzeiro,
E não peça nem licença.

É assim que recomendo:
Primeiro, aperte o gatilho,
E depois faz a pergunta,
Pois todo aquele rastilho,
Com certeza é de ladrão,
Que, em plena escuridão,
Finge ser um andarilho.

Essas águas me pertencem.
Quem não pode com a carga,
Desarreia o seu jumento,
Deixando a terra se larga:
Na vida de retirante.
Mas não seja um errante,
Nesse açude sem adarga.

— O seu dito popular —
Respondeu o cangaceiro —
Não conheço, não senhor,
Mas algum alcoviteiro,
Ou mulheres do bordel,
Ninguém disse ao Coronel
Que o meu tiro é certeiro?

Pois na arte de atirar
Jamais perdi uma bala,
 A minha mira é certeira.
— Isso todo mundo fala —
Respondeu o Coronel.
Sentindo uma dor cruel,
Por sua vida passá-la.

— Com a encrenca o que faço?
Perguntou Pedro, matreiro.
— Pelo mal acontecido?
Se alguém fizer berreiro,
Por qualquer malsucedido,
É ladrão que foi ferido —
Disse Reis ao pistoleiro.

— Todo cuidado é bem pouco,
Não vá, pois se preocupar,
Resmungou o Coronel
Lobisomem sem luar
Que rouba na escuridão
A água da criação,
Comigo vai se acertar.

— Ocorra o que acontecer,
Toda encrenca é comigo —
José Reis tranquilizou
— Faça o teu serviço, amigo,
Que garanto a minha parte.
O invasor que faz arte,
Carece de bom castigo.

O Coronel foi-se embora,
Deixou Pedro Carabina
Na copa do juazeiro,
Acoitado na surdina.
E foi pra casa nervoso,
O coração ansioso,
Sentindo a alma assassina.

Logo baixaram as trevas,
E a noite não esfriava.
Carabina na espreita,
Como um gato que caçava.
Mas, na casa do patrão,
Na janela do oitão,
O Coronel aguardava.

Cantando na beira d’água,
Os sapos chamando a chuva.
Nos galhos do juazeiro,
Só tinha um mandachuva,
Mas o calor arretado
Tornou seu olho pesado,
Sonhando com maranduva.

No aconchego do lar,
José Reis foi pro fogão,
Preparar um chá de ervas.
Encheu todo um canecão,
Foi beber na velha rede,
Saciando a grande sede,
Na varanda do oitão.

Olhando pra escuridão,
Sentiu falta da família.
Deus foi muito bom com ele,
Não olhando à sua quizília,
Teve um filho com Tereza,
Esse sonho de beleza,
A causa da sua vigília.

Pensando assim, cochilou.
Sonhou que tinha morrido,
Que gritava num caixão,
Sem ao menos ser ouvido.
O cortejo caminhava,
Porém quanto mais tentava,
É que não era atendido.

O caixão era levado,
Pela família melosa,
Carabina e um peão.
Tereza toda chorosa,
O filho só estava triste,
Chorando a dor persiste,
E na morte é amargosa.

E desceram o caixão
Numa cova bem profunda.
Beirando as águas do açude,
Pareceu-lhe muito funda,
Olhando pelos buracos.
Seus membros estavam fracos,
E com dores na cacunda.

A primeira pá de terra,
Foi jogada no caixão,
Mas a terra retornou,
Para espanto do peão.
E mais outra tentativa,
Na mesma expectativa.
Viu-se a mesma reação.

Foram muitas pás de terra,
Jogadas, porém voltaram.
E as pessoas presentes,
Com isso se assustaram
Subiram então o caixão,
Para alguma solução,
Que jamais a encontraram.

Daniel estava triste,
Todo cheio de amargura.
A terra que o pai amou,
Vivendo da agricultura,
Por quem deu a própria vida,
Ora nega-lhe a guarida,
Recusando a cobertura.

— Se a mãe terra recusa,
Seu filho em suas entranhas,
Como posso entender?
Essas coisas tão estranhas —
Acudiu a mãe Tereza —
Essa vida, com certeza,
Tem as suas artimanhas!

— Escute filho, o que digo:
Mas o corpo do seu pai
Estava tão corrompido
Que para terra não vai,
Por causa da avareza,
Intrínseca a natureza
Do seu querido papai.

Ele foi muito egoísta,
Deu à terra prejuízo,
Com seu coração soberbo.
Muito mau e sem juízo,
Deixou muitos campesinos
Morrerem com seus meninos,
Sem pena, a verdade friso!

Provocando tudo isso,
Sem nenhuma complacência
Jamais quis atenuar
Toda a grande violência
Decorrente da miséria
Dos flagelos da matéria,
Que às vezes pede urgência.

Pessoas morriam de sede,
Mas os monstros mais cruéis
Não eram esses da seca,
Mas os grandes Coronéis,
Ladrões de todas as terras,
Dos açudes e das serras,
Sem pagarem quaisquer réis.

Os olhos de José Reis
Cresceram nas terras boas,
De água e bons açudes
Sobre serras e lagoas,
Onde surgem as nascentes,
E muitas águas correntes,
Dão vida para as pessoas.

Por que tanta crueldade?
Por que tanto padecer?
É por culpa do covarde,
Que de Deus não pode ser,
Essa vida de suplícios
Desses nossos compatrícios,
Implorando pra chover.

Jamais moveu uma palha,
O meu amado marido,
Pra ajudar um flagelado,
Com fome, sede ou ferido.
Afugentava o coitado,
Que saía revoltado.
Foi assim o meu querido.

Olho aberto em terra alheia
Desabafava a Tereza —
Fechado para o alheio.
Porém Deus não dá moleza.
Eu não posso me calar,
Pois não se pode aceitar
Que Deus queira a avareza.

A terra prover aos vivos,
Sendo o estrado de Deus.
Quem faz mau uso da terra
Atormenta os filhos seus.
Quando para o coração,
Vaga pela escuridão,
Como espíritos ateus.

Nas estradas bem escuras,
Que cortam todas as matas,
Espectro de morto vivo
Corre com suas bravatas,
Assombrando viajantes,
Os solteiros, os amantes,
Solitários e beatas.

Daniel muito calado,
Ouvindo a turma falar,
Pediu licença à mãe
Para lhe comunicar
Sua grande decisão:
Que a tal assombração,
No seu pai não ia ficar.

— Diga, então, querido filho,
Qual será a providência
Para enterrar o defunto?
Depois de tomar tenência,
Respondeu com emoção:
— Eu tive uma inspiração
Repleta de coerência.

Escute só, minha mãe:
Se não vence o inimigo
Com palavras agressivas,
Use o tom de bom amigo,
Assim terá a vitória,
Podendo viver em glória,
Sem correr nenhum perigo.

— Diga logo, meu bom filho,
Não me deixe mais sofrida.
— Escute bem, minha mãe:
Se a terra deu-lhe a vida,
Hoje não quer aceitá-lo,
Então nos resta queimá-lo,
Pra questão ser resolvida.

O espírito apavorou-se  
Dentro do corpo gelado.
Alguém precisava ouvi-lo,
Não queria ser queimado.
Por pior que tenha sido,
Nunca foi nenhum bandido,
Não queria ser cremado.

Fizeram logo a coivara,
O fogo foi ateado,
As chamas bruxulearam
José Reis gemeu calado.
Ergueram então o caixão.
Tereza soltou sua mão,
O caixão caiu virado.

Lá dentro daquele corpo,
Bem de frente pra fogueira,
O espírito do finado,
Com os olhos bem na beira,
Sentindo o corpo esquentar,
De nada valia gritar,
Aumentando a tremedeira.

José Reis entrou em pânico
Bem no instante fatal.
O seu corpo foi pro fogo,
Caindo na horizontal.
As carnes se enrijecendo,
Das chamas se protegendo,
Clamando a força vital.

Chamas desintegradoras,
E ávidas por alimento.
As dores alucinantes,
Espírito em sofrimento.
José Reis, sem esperança,
Juntou toda a sustança,
E gritou o último alento.

Acordando bem suado,
O coração palpitando
José Reis se levantou.
Sentiu seu corpo ofegando,
Mas estava aliviado.
Bem vivo e bem acordado,
O seu corpo governando.

Por falar em governar,
Lampejou sua consciência,
Lembrando de Carabina,
Que, sob a sua intendência,
Estava de prontidão
Pra matar qualquer ladrão,
Com a sua aquiescência.

Era preciso evitar
Que aquele bandoleiro
Matasse a sua família,
Da copa do juazeiro.
Reis saiu bem apressado,
Para que seu mau soldado,
Não desse um tiro certeiro.

Um barulho lá na água,
No lago da ribanceira,
Acordou o Carabina.
Aturdido com tonteira,
Vendo dois vultos distantes,
Mandou dois tiros errantes,
Porém de mira certeira.

A norte de onde estava,
Pedro ouviu um longo grito:
— Pare, Pedro Carabina!
Não atire, seu maldito.
Não quero mais violência,
Libero-o da incumbência,
Fica o dito por não dito.

O Coronel se agarrou
Ao tronco do Juazeiro,
Ofegante e espavorido,
Olhando pro pistoleiro,
Que muito se espantou:
— O meu nome ele acertou?
Isso é mesmo lisonjeiro.

Meu Coronel se acalme,
Pois está muito avexado.
Só cumpri sua ordenança:
Atirar no descarado.
Falta perguntar o nome,
E também o sobrenome,
Antes de ser enterrado.

Reis teve um pressentimento:
— Valei-me, Nossa Senhora!
Meu padrinho padre Cícero,
Socorra-me nessa hora
Partiu correndo pro lado,
O coração torturado
Querendo pular pra fora.

— Valei-me, Virgem Maria,
Desse mau acontecido!
Chegando à beira do açude,
O seu herdeiro estendido,
E a esposa adiante,
José Reis, todo arquejante,
Ergueu o filho ferido.

Daniel em agonia,
O pai abraçou chocado.
— O que eu fiz com vocês?
Sou um amaldiçoado!
Morrerei num fogaréu;
Ou desabe em mim o céu;
Pra poder morrer queimado.

Acorreu para mulher,
Deitada e desfalecida.
— Me perdoe, minha esposa,
Mas ela estava sem vida.
Naquele triste momento,
Ampliou seu sofrimento,
Com a esposa estendida.

Era uma cena horrível,
De muita amargura e dor.
José Reis voltou ao filho,
Que sentia grande torpor:
— Eu ia encher a moringa
Nessa água sem catinga,
Para levar pra o senhor.

Disse o filho moribundo,
Nos braços do seu algoz,
Que também era seu pai
Tentando ouvir sua voz.
— Oh! Meu filhinho querido,
Eu estou desfalecido
Com esse incidente atroz.

Daniel suspirou fundo.
E deu um sorriso terno,
Porque chegara a sua vez
De topar com Deus eterno.
Perdoava o pai do crime,
Numa atitude sublime,
Cedendo ao amor paterno.

Aquele momento triste
Reis não esqueceu jamais.
Enterrou sua família
Ali onde os animais
Vão à lama se deitar,
E, pra não se arrebentar,
As cruzes, não viu mais.

O tempo, que é nosso mestre
Que tanto ajuda a crescer,
Também pode ser carrasco.
Castigar, fazer sofrer!
O tempo traz alegria,
Mas também traz agonia,
Para quem mal proceder.

A natureza, vestida
De um espírito agitado,
Usava nova roupagem,
Com um tom modificado
Por essa seca insistente,
Pelo clima muito quente,
Que faz tudo acinzentado.

A vida é feita de ciclos.
Culpa-se o tempo que agita
Esse rastilho excitado,
Que queima e que precipita;
Que tão bem cria e recria,
Que bem pesa e alivia,
Que se cala e que se grita.

Embalando-se no tempo,
O Coronel suspirava.
Olhar fixo no horizonte,
Na rede se balançava.
Cada dia mais obeso,
Largado como indefeso,
Só balançava e pensava.

A rede do Coronel
Balançava o tempo todo,
Com ele entregue a si mesmo.
Supondo tudo um engodo,
Que, por vingança de Deus,
Por todos mal-feitos seus,
Atirou-o nesse lodo.

Curtindo sua desventura,
Esqueceu os seus passeios
Que fazia nas manhãs,
Pra revistar os esteios,
Galopando pelas terras,
E subindo até as serras,
Bem grudado nos arreios.

Balançava arrenegado,
Em profunda depressão,
Parecendo um morto vivo,
Nesse mundo de ilusão.
E se de dia engordava,
Mais à noite só chorava,
Pela dor no coração.

Afinal chega dezembro,
Aracati vem silvando
— O ventinho misterioso
Que chega e vai avisando
Que, no sertão cearense,
Chuva boa, ninguém pense,
Pro verão já vou cantando.

José Reis abriu seus olhos,
Contemplando a sua terra.
— O meu pai sempre dizia:
“O bom cabrito não berra”,
Essa terra há de matar-me,
Mas jamais abandonar-me,
E, então, tudo se encerra.

Reis ficou encafifado
Com o tema da herança,
Se não tinha mais herdeiros,
Nem adulto, nem criança,
Pro governo, nem pensar!
Não se pode confiar
Nessa nossa governança.

Mas, enquanto ele viver,
Vai ficar a observar,
Toda aquela imensidão,
Todo dia aumentar.
Tanto a terra e a criação,
Quanto a sua plantação,
Tudo vai multiplicar.

Tanta terra numa mão,
Para ser a garantia
Duma vida tão inútil,
Com certeza é covardia.
Tanta terra pra plantar,
E famintos a chorar,
Toda hora e todo dia.

Poderia então salvar
Até mesmo um povoado,
Com a terra que ele tem,
E tesouro bem guardado!
Mas a sua vida é mais útil
Que cem vidas, mesmo inútil?
Reis pensava atormentado.

— Que loucura! Oh, Santo Deus!
Por que Deus se ocuparia
De enviar para o mundo,
Tanta gente em romaria,
Pra juntar tantos tesouros,
Tanto orgulho e tantos louros,
Se no céu não tem valia?

Matutava o Coronel:
Qual o sentido da vida
Se reina a estupidez,
E o poder é a medida?
Por que eu cobiço tanto,
Se o pouco, no entanto,
Basta a vida bem vivida?

O mistério dessa vida
Na vida vou encontrar.
No cenário desse mundo
É que eu vou dramatizar.
Isso aqui é tão mesquinho,
Que só vejo um caminho
Pra esse mundo eu ganhar.

No sertão do Ceará,
Aracati sibilava
Melodias bem sinistras.
À noite, a lua brilhava,
Nas terras do Coronel.
E na sua rede fiel,
Finalmente, ele sonhava.

Naquela noite deitou,
Dormiu um sono pesado,
Mas, logo ao amanhecer,
A sanfona com xaxado
Incitava a multidão,
Pois daquela região,
Não faltou esfomeado.

Era plena primavera,
Quando a porta se abriu,
Calou-se o alarido.
Ninguém gritou, ninguém riu.
A espera terminou,
Finalmente ele apontou,
Acenando, então, sorriu.

— Um bom dia, minha gente!
Inda bem que me atenderam!
Cumprimentou José Reis.
Espantados, responderam:
Com acenos muito frios,
Sentindo até arrepios,
Em silêncio emudeceram.

Meus amigos, minha gente,
Não estranhem o que digo,
Peguem logo uma novilha,
Levem-na para o abrigo.
Também peguem uns cabritos,
Mais alguns dos franganitos,
Que a bebida é comigo.

Façam um grande churrasco,
Só não matem o leitão,
O bichinho é muito novo
Pra servir pra esse povão.
Pois o prato principal
Vou deixar para o final,
Essa é a minha decisão.

A sanfona deu a nota,
Começou o arrasta-pé;
Muitas brasas crepitando,
Ferventando o café.  
O povo todo comendo,
Festejando e bebendo,
E aspirando um rapé.

O sol já estava alto,
A festa bem agitada,
Um come-come sem fim,
Muita gente esfomeada,
Que comia em desespero,
Até mesmo sem tempero,
Com tanta fome atrasada.

Nessa hora o Coronel,
Como bom anfitrião,
Felicitou os presentes,
Demonstrando afeição,
Foi dizendo com voz alta:
— Amigos, perdoem a falta,
Por essa interrupção.

Se calaram, os festeiros,
Apurando os ouvidos.
José Reis continuou,
Com os cuidados devidos,
Pra se fazer entender,
Pois tudo que ia dizer
Era obra dos sentidos.  

— Meus amigos conterrâneos,
Minha gente tão sofrida.
Disse assim o Coronel —
Essa vida é bandida,
A gente se torna a vítima
Dessa seca ilegítima,
Que por Deus foi esquecida.

Vou livrar-me dessa carga,
Pra ganhar a liberdade
Nessa vida traiçoeira,
Que me priva da verdade.
Tenho aqui um documento,
Onde deixo em testamento
A minha propriedade.

E além dessa fazenda,
Com a porteira trancada,
Entrego tudo a vocês
Toda a terra e a boiada,
Minha posse financeira,
As águas da ribanceira,
Pois, não ficarei com nada.

A princípio só silêncio,
E depois a explosão,
Gritos e palmas com júbilo,
Muito choro e emoção.
A sanfona estremecia,
Pra cobrir a gritaria
Nessa grande comoção.

Na porteira principal,
Cruzando a última vez,
Ainda ouvindo distante,
Olhando sem altivez,
Empunhava o seu cajado
Com um alforje atrelado,
Na busca da honradez.

Despediu das suas terras,
Com o coração partido.
Se de terra já foi dono,
Homem bravo e temido,
Isso agora era passado,
Já pensava aliviado,
Com tudo bem decidido.

Lá em Areia Dourada,
Escutando inda sentado,
Tudo que o velho dizia,
Eu estava emocionado.
A quitanda enfim se abriu,
O velho pra mim sorriu,
Depois do causo contado.

Levantei-me apressado.
Agradecendo o errante,
Pois aquele longo causo,
Eu achei interessante,
Prometi não esquecer,
Para em todo amanhecer
Lembrar-me desse vagante.

Demonstrando alegria,
Me voltei para a escada.
Mas ali, onde ele estava,
Como mágica de fada,
Não havia mais ninguém,
Nem aquém, nem mais além,
E nem mesmo alma penada.