A
Vida de Cancão de Fogo
E o
seu Testamento
Leitor
se não se enfadar
Desta
minha narração,
Leia
a vida deste ente
E
preste toda atenção,
Que
foi o quengo mais fino
Desta
nossa geração.
Pois
ele desde criança
Sabia
a tudo iludir,
Estradeiro
muito velho
Não
pode a ele competir,
O
Cancão nunca armou laço
Que
alguém pudesse sair.
Cigano
que no Egito
O
temiam como lobo,
Entre
todos os ladrões
Era
professor de roubo,
Chegou
aqui no Brasil
O
Cancão fez dele um bobo.
01
Até
na hora da morte
O Cancão
caloteou,
Com
o Testamento dele
Inda
o juiz se enrascou,
O
escrivão recebeu
Um
processo que tomou.
Na
vida dele houve caso
De
chamar a atenção,
Muita
gente talvez pense
Que
seja exageração,
Ia
um ladrão roubar ele
Ele
roubava o ladrão.
Agora
vamos saber
Quem
era esse tal Cancão,
Descrever
os sinais dele
Costumes
e propensão,
Para
podermos entrar
Em
sua apreciação.
Cancão
era um apelido
Que
os irmãos lhe puseram,
Pelas
as travessuras dele
Esse
apelido lhe deram,
Por
ele nunca querer
O
que os parentes quiseram.
Ele
era um branco moreno
De
olhos agateados,
O
rosto largo pequeno
Os
cabelos estirados,
Não
eram preto nem louro
Eram
quase acastanhados.
02
O
corpo muito franzino
E
muito pouco comia,
Vivia
sempre pensando
De
noite pouco dormia,
Não
confiava em ninguém
E
nem contava o que via.
No
quengo é que não se pode
Dar
dele uma descrição,
Só
posso classificá-lo
Como
grande aberração,
Um
caso extraordinário
Enfeites
da criação.
Porque
admira a todos
Este
ente se criar,
E
enganar a todo mundo
E
ninguém o enganar,
Nunca
achou um estradeiro
Que
pudesse o enrascar.
Roubar
objeto algum
Isso
não, nunca roubou,
Mas
em negócio com ele
Nunca
ninguém se salvou,
Desde
a Igreja a justiça
Tudo
isto se queixou.
O
pai de Cancão de Fogo
Foi
um homem preparado,
De
muitos bons sentimentos
E
muito bem arranjado,
Mas
a sorte neste mundo
Dar
e tira, como um dado.
03
Por
isso Cancão um dia
Estava
numa discussão,
Disse
a um irmão da mãe dele
Homem
algum tem distinção,
A
vantagem do fiel
É a
mesma do ladrão.
Já
tenho quase dez anos
Nunca
ouvi dizer assim:
Pedro
escapou por ser bom
Paulo
morreu por ser ruim,
Bom
e mal, bonito e feio
Tudo
tem o mesmo fim.
Cancão
tinha sete anos
Quando
andou perto da morte,
Foi
passar um rio cheio
A
correnteza era forte,
Desta
vez quase a desgraça
Fez
ele mudar de sorte.
O
Cancão já se afogando
Estava
bastante vexado,
Quando
passou um cavalo
Que
ali morreu afogado,
O
Cancão saltou em cima
E
disse: estou embarcado.
Os
irmãos bateram palmas
Quando
viram ele cair,
Disseram
em casa nós vimos
O
Cancão se consumir,
Afogou-se
nesse instante
Ali
deitaram a sorrir.
04
A
própria mãe de Cancão
Não
deu sinal de sentida,
Quando
trouxeram-lhe a nova
Da
desgraça acontecida,
Disse:
ele não prestava
Não
perdi nada na vida.
Cancão
saiu no cavalo
Com
as pernas a remar,
Tocaram
numa barreira
Cancão
pode se salvar,
Disse
ele: bom cavalo
Que
faz o dono escapar.
O
Cancão entrou em casa
Pôs
tudo surpreendido,
Principalmente
os que viram
Quando
ele tinha caído,
Já
tinha corrido a nova
Que
Cancão tinha morrido.
A
mãe dele perguntou-lhe
– A
morte então não te quis?
Quem
não quis, disse Cancão
Foi
o esforço que eu fiz,
Graças
a um cavalo morto
Que
foi quem me fez feliz.
Cancão
de Fogo já tinha
Nove
ou dez anos de idade,
Quando
o pai dele morreu
Deixou-os
em necessidade,
Cancão
quando soube disse:
–
Isso não é novidade.
05
Minha
mãe está sem marido
Por
isso não vá chorar,
Eu
também fiquei sem pai
Porém
sempre hei de passar,
Ela
pode achar marido
Pai é
que não posso achar.
Eu
digo como o macaco
A um
outro respondeu:
Quando
ele disse: meu mano
Sua
mãe hoje morreu,
Disse
–lhe então o macaco
Por
isso já esperava eu.
A
mãe de Cancão de Fogo
Decidiu-se
a trabalhar,
Cancão
de Fogo não quis
A
isso se sujeitar,
Dizendo:
não tenho força
Para
serviço acabar.
Agora
para viagem
Ou
para qualquer mandado,
Achava-o
de prontidão,
Não
se mostrava enfadado,
Ninguém
conseguia dele
Era
trabalho pesado.
Todos
na casa queriam
Ver
o Cancão se acabar,
Dizia
o Cancão de Fogo:
Pode
tudo me odiar,
Amor
não enche barriga
Ódio
não faz empacar.
06
Minha
mãe acha que fez
Favor
ter-me concebido,
Eu cá
sim, fiz lhe um favor
Livrei-a
de ter morrido,
E o
que seria dela
Se
eu não tivesse nascido?
Se
ela deu-me de mamar
Eu
não sei, ela é quem diz,
Eu
não lhe pedi o peito
Se
me deu foi porque quis,
Em
eu lhe vazar os seios
Foi
um favor que lhe fiz.
Eu
cá só devo favor
Ao
sol e a água do rio,
A
água porque eu bebo
E
tomo banho no estio,
Devo
ao sol porque me esquenta
Na
hora que tenho frio.
Um
dia disse a mãe dele:
–
Não tenho o que almoçar,
O
Cancão de Fogo disse:
– É
fácil de se arranjar,
O
mundo é uma dispensa
Tem
o que se procurar.
Então
a mãe dele disse:
– Só
se for comprar fiado,
Eu
morro, porém não compro
Deus
está vendo o meu estado,
Seu
pai morreu sem dever
Conservou
seu nome honrado.
07
Disse
Cancão: essa honra
Não
passa de palhaçada,
Porque
o capitalista
Não
olha a pessoa honrada,
Leve
a honra numa venda
E
veja se arruma nada.
Disse
a velha: não puxaste
Ao
teu pai que foi honrado,
Disse
Cancão: Deus me livre
De
ter a ele puxado,
Se
eu fosse como meu pai
Também
estava enterrado.
Ela
chorando não pode
Pronunciar
mais um nome,
O
Cancão de Fogo disse:
Minha
mãe está é com fome,
Disse:
espere aí mais um pouco
Que
nessa casa se come.
Saiu
encontrou um velho
Que
andava ali perdido,
O
velho era sertanejo
E
ali desconhecido,
Não
sabia dum hotel
Onde
fosse garantido.
O
velho muito usurário
Não
queria se arranchar,
Em
qualquer hotel decente
Só
com medo de pagar,
Dava
preferência a um rancho
Somente
a fim de poupar.
08
Disse-lhe
o Cancão de Fogo:
Vossa
mercê está perdido?
Me
pague que eu vou botá-lo
Em
um lugar garantido,
Foi
o hotel que já vi
De
preço mais resumido.
Eu
vou contar uma história
Eu,
lá levei um freguês,
Era
um mês que ia passar
Foi
tão bom que passou três,
Quer
saber quanto pagou?
Dez
tostões por cada vez.
Se
me der cinco mil réis
Vamos
que está arranchado,
E a
despesa é a que disse
Lá
não há preço alterado,
Leve
os contos que tiver
Que
lá ninguém é roubado.
O
velho disse consigo:
Esse
assim vem me servir,
É atrás
desse que eu ando
Para
comer e dormir,
Só
gastarei seis mil réis
Daqui
para eu sair.
E
saiu com o Cancão
Com
o mesmo a conversar,
Cancão
mostrou–lhe uma casa
Disse:
é ali pode entrar,
Dê-me
o dinheiro que volto
Ver
outro pra hospedar.
09
O
velho deu-lhe dinheiro
E
Cancão saiu danado,
Não
procurou mais ninguém
Foi
logo para o mercado,
Dizendo
com seus botões
– Eu
hoje como deitado.
Gastou
os cinco mil réis
Não
ficou com um vintém,
Chegou
em casa com tudo
E
disse a mãe: aí tem,
Pode
cuidar no almoço
Por
hoje jantamos bem.
A
velha olhou para ele
Com
cara bastante feia,
Perguntou:
foste comprar
Fiado
na venda alheia?
Disse
Cancão: foi um frete
Que
eu levei para a cadeia.
A
velha aí exclamou:
–
Oh! bruto amaldiçoado,
Além
de seres ladrão
És
de mais até malvado,
Além
de roubar o velho
Deixaste
tão enrascado.
Lançando
mão uma vara
Atacou
ela a Cancão,
Cancão
se fez na canela
E
disse: na vara não,
Eu
não hei de ser fiel
Obrigado
a ser ladrão.
10
O
velho chegou na casa
Julgando
que fosse hotel,
Então
logo quando entrou
Conheceu
que era quartel,
Vieram
ao encontro dele
O
cabo e o coronel.
O
furriel perguntou-lhe:
– O
senhor vem se entregar?
É
sem dúvida um criminoso
E
vem do júri se livrar,
O
velho ficou de forma
Que
nem podia falar.
–
Ladrão! Exclamou o velho
Traiçoeiro
e desgraçado!
Disse–lhe
o cabo se sente
Não
precisa ter cuidado,
Porém
só pode sair
Com
ordem do delegado.
Então
esse caso deu-se
No
centro da capital,
E
Cancão de Fogo disse:
– Se
ficar aqui vou mal,
Eu
posso correr o mundo
E
não gasto o principal.
O
tio dele sabendo
O
que tinha se passado,
Foi
na casa da mãe dele
Que
ia desesperado,
Dizendo
que do Cancão
Inda
seria vingado.
11
Cancão
ganhou a estrada
De
Paraíba a Goiana,
Passando
por um partido
Entrou
chupou uma cana,
Disse:
nessas condições
Eu
viajo uma semana.
Largou-se
de estrada a fora
Sem
direção sem destino,
Quando
chegou em Goiana
Embora
que pequenino,
Foi
procurar uma casa
Que
empregasse menino.
Empregou-se
numa casa
Para
vender tabuleiro,
A
doze mil réis por mês
Disse
ele: é bom dinheiro,
Isso
é quase um ordenado
Dum
guarda livro caixeiro
Do
serviço de Cancão
Tudo
na casa gostava,
Muito
fiel e esperto
Aquilo
não se encostava,
E do
tabuleiro dele
Um
bolo não se roubava.
Ao
cabo de sete meses
O
Cancão tinha juntado,
Sessenta
e quatro mil réis
Quase
todo ordenado,
O
dinheiro que ganhou
O
tinha todo guardado.
12
Um
dia disse consigo:
Minha
mãe tem precisão,
Talvez
não tenha mais roupa
E
até lhe falte o pão,
Vou
mandar-lhe esse dinheiro
Que
ela agradeça ou não.
Enviou-o
pelo correio
Mandou
dizer onde estava,
E o
emprego que tinha
A
quantia que ganhava,
Então
mandou lhe dizer
Que
todo mês lhe mandava.
Assim
mesmo pela velha
Tudo
tinha se arrumado,
Ela
pensou que Cancão
Tinha
até melhorado,
Mas
o tio quando soube
Ficou
como um cão danado.
E
era irmão da mãe dele
Essa
fera inconsciente,
Só
odiava a Cancão
Por
ser ele inteligente,
E os
filhos desse monstro
Brutos
desgraçadamente.
Havia
ali um mulato
Chamado
José Vaqueiro,
Um
indivíduo ladrão
Covarde
e alcoviteiro,
Jurava
o que nunca viu
Por
diminuto dinheiro.
13
Esse
tendo feito um roubo
O
Cancão de Fogo viu,
Foi
logo ao delegado
E o
roubo descobriu,
Por
isso o cabra foi preso
E a
sentença se cumpriu.
O
tio de Cancão de Fogo
Julgou
ir muito acertado,
Mandou
por José Vaqueiro
Vir
o Cancão escoltado,
Dizendo
com seus botões:
–
Ele chega desgraçado.
Chamou
o vaqueiro e disse:
–
Dou–lhe parte de uma história,
Vá
ver Cancão em Goiana
Está
aqui a precatória,
Ele
já lhe deve uma
Tem
mais você esta glória.
A
precatória que vai
Foi
feita por escrivão,
O
delegado assinou
O
mandado de prisão,
A
denúncia vai provando
Que
o mesmo é ladrão.
Ele
descobriu seu roubo
Você
pode se vingar,
Ele
fez você ir preso
E
custou a se soltar,
Essa
ocasião é própria
Para
você se descontar.
14
O
indivíduo saiu
Como
uma fera tirana,
Levou
chuva no caminho
Pôs-se
a tomar muita cana,
Foi cair
embriagado
Num
dos ranchos de Goiana.
O
Cancão ia passando
E
achou ele deitado,
Disse
aí dentro de si:
–
Esse cabra vem danado,
O
carcereiro amanhã
Terá
mais esse apurado.
Meteu-lhe
a mão na algibeira
E
achou a precatória,
Era
um protocolo enorme
De
uma medonha história,
Disse
Cancão: eu te arranjo
Um
baile de palmatória,
Aonde
Cancão dormia
Tinha
chaves enferrujadas,
De
portas de armazéns velhos
Por
ali depositadas,
Cancão
limpou-as dizendo:
–
Hoje são aproveitadas.
Voltou
encontrou o cabra
Inda
na mesma soneira,
Cancão
tomou-lhe chegada
Pôs
a mão muito maneira,
Trazia
as chaves num mólho
Botou-lhe
na algibeira.
15
Saiu
no mesmo instante
Foi
dizer ao delegado,
Vi
no rancho de tal parte
Um
indivíduo deitado,
É
ladrão e assassino
E três
vezes processado.
Anda
com chave que abre
Qualquer
porta de armazém,
E na
casa aonde vai
Não
deixa nela um vintém,
Se
não o prenderem logo
Não
escapará ninguém.
Então
foram lá no rancho
Inda
estava ele deitado,
Cinco
chaves na algibeira
Foi
visto por um soldado,
– O
indivíduo é ladrão
Disse
o praça ao delegado.
O
indivíduo acordou
Já
debaixo de facão,
Falava,
porém ali
Ninguém
lhe dava atenção,
Ele
ali calculou logo
Ser
cilada de Cancão.
Daí
a sessenta dias
Foi
que veio justificar,
Levou
sessenta e três surras
Quase
morre de apanhar,
Por
um milagre de Deus
Ainda
pôde voltar.
16
Cancão
disse consigo:
– Eu
aqui sou descoberto,
Pedir
as contas e sair
Este
é o plano certo,
Eu
não quero que a polícia
Me
ache de peito aberto.
Devido
a José Vaqueiro
Ter
caído na prisão,
O
comércio de Goiana
Fez
um presente a Cancão,
Deu-lhe
duzentos mil réis
Como
gratificação.
Cancão
antes de sair
Fez
duas cartas primeiro,
Uma
foi para a mãe dele
Lhe
mandando mais dinheiro,
Outra
ao tio dando lembrança
Que mandava
Zé Vaqueiro.
Dizia
a carta do tio:
–
Seu mordomo excelente,
Eu
apresentei-o aqui
Ao
delegado somente,
Foi
para a casa da câmara
Seguido
por muita gente.
Está
na casa do governo
Lá
tem honra de sultão,
Soldados
ali na porta
A
sua disposição,
Se o
senhor tivesse vindo
Era
mais satisfação.
17
Cancão
pediu ao patrão
Licença
de uma semana,
Para
visitar sua mãe
Que
estava em Itabaiana,
Dizendo:
ela não pode
Vir
a pé até Goiana.
O
patrão aí pagou-lhe
O
resto do ordenado,
Disse:
Cancão eu agora
Quero
tomar mais cuidado,
Dormir
pouco e andar muito
Viver
mais acautelado.
O
tio de Cancão de Fogo
Veio
cá pessoalmente,
E
provou com documentos
Que
a prisão foi inocente,
Foram
procurar Cancão
Há
um mês estava ausente.
O
tio de Cancão de Fogo
Disse:
ao tal José Vaqueiro:
–
Você siga daqui mesmo
Atrás
daquele estradeiro,
–
Disse o cabra eu não vou lá
Inda
por todo dinheiro.
Quem
sofreu do que sofri
Não
vai atrás de Cancão,
No
meu lombo não tem lixa
Para
limpar-se facão,
Os
dois meses de cadeia
Me serviram
de lição.
18
Fui
eu que quase morri
De
facão e palmatória,
Os
tormentos que passei
Me
ficaram na memória,
Garanto
que seu sobrinho
Foi
quem ganhou a história.
Cancão
embolsou o cobre
Disse:
vou dar um passeio,
O
mundo é mole eu sou duro
Vou
furar de meio a meio,
Agora
vou a Recife
Vou
ver se é bonito ou feio.
Cancão
saiu de Goiana
Antes
de dar meio-dia,
Chegou
em Igarassu
Ao
tocar Ave-Maria,
Não
quiseram dar-lhe rancho
Pois
ninguém o conhecia.
A
polícia o encontrou
Perguntou
de onde vinha,
Disse
ele: venho da casa
Da
minha avó e madrinha,
Disse
o subdelegado:
Você
está bom pra marinha.
O
Cancão dentro de si
Ficou
bastante agitado,
Mas
se mostrasse recusa
Ia
dormir amarrado,
Disse
consigo: eu arrumo
Esse
subdelegado.
19
Este
subdelegado
Era
um alferes ambulante,
Sujeito
metido a bom
Porém
muito ignorante,
O
Cancão disse consigo:
Este
aqui cai num instante.
Disse
Cancão: senhor tenente
Era
atrás disso que eu vinha,
Porque
até quando eu durmo
Eu
sonho com a marinha,
Por
isso já desgostei
A
minha avó e madrinha.
O
senhor faz uma carta
A
quem eu hei de falar,
Me
ensine a rua onde é
Que
é fácil de se acertar,
Disse
o alferes: eu mando
Um
soldado lhe levar.
Inda
é melhor para mim
Disse
contente o Cancão,
Peço
a vossa senhoria
Para
me dar um cartão,
Porque
já me arrumei bem
Com
a sua proteção.
Foi
Cancão a chefatura
Mas
não se deu por achado,
No
dito quartel dormia
O
tal subdelegado,
Por
fortuna nessa noite
Da
força tinha um soldado.
20
O
alferes confiado
Que
ali estava garantido,
Armou
a rede e deitou-se
Da
roupa todo despido,
Ressonava
como porco
Estava
do mundo esquecido.
O
soldado na tarimba
Da
mesma forma dormiu,
O
Cancão de Fogo disse:
–
Este sono me serviu,
Tirou
a roupa de todos
Abriu
a porta e saiu.
Carregou
as duas blusas
Do
alferes e do soldado,
Calças,
camisas e ceroulas
Tudo
isso foi levado,
Só
ficou com o relógio
O
mais botou no valado.
Às
seis horas da manhã
Encontrou
ele um menino,
Um
desses que vem ao mundo
Por
capricho do destino,
E ao
princípio da vida
Triste
como a voz do sino.
Cancão
perguntou a ele
O
que tens que vem chorando,
Já
vai te doendo os pés?
E te
vejo suspirando!
Respondeu
ele: eu devia
Viver
só me lastimando.
21
Fui
um menino enjeitado
Fui
logo triste ao nascer,
Nem
uma ave noturna
Tão
triste não pode ser,
Eu
sou igual ao deserto
Onde
ninguém quer viver.
Esse
homem que me cria
Me
maltrata em tal altura,
Que
nem um preso no cárcere
Sofrerá
tanta amargura,
Não
foi Deus é impossível
Que
me deu tal desventura.
– E para
onde é que vás?
O
Cancão lhe perguntou:
– Eu
vou daqui a dez léguas,
Que
hoje ele me mandou,
E
não me deu um vintém
Veja
em condições que vou.
–
Queres fazer como eu
Já
ficará descansado,
E
teu pai de criação
Talvez
nem tenha cuidado,
Pois
só se tem prejuízo
Se o
objeto é comprado.
Eu
também sou como tu
Só
não fui foi enjeitado,
Mas
até por minha mãe
Eu
sou bastante odiado,
Porém
este mundo é grande
Eu
hei de viver folgado.
22
Como
se chama você?
Respondeu:
chamo-me Alfredo
– Eu
sou o Cancão de Fogo
Meu
nome digo sem medo,
Tendo
precisão eu nego
Porque
em tudo há segredo.
Quer
ir comigo, acompanhe-me
Faço-lhe
observação,
Não
há de insultar a ninguém
E
nem há de ser ladrão,
Ser
esperto nos negócios
Isso
é uma obrigação.
Só
furtará uma coisa
Estando
necessitado,
Se
não quiserem lhe dar
Tem
o direito sagrado,
Aí
se rouba até Deus
Se
achar Ele descuidado.
Se
um ladrão vir nos roubar
Devemos
procurar jeito,
De
roubar primeiro ele
Porém
roubá-lo direito,
Que
depois dele roubado
Todos
digam: foi bem feito.
Disse
o Alfredo: pois vamos
Porém
eu quero saber,
Nós
ainda tão pequenos
De
que podemos viver?
Disse
Cancão: ora essa
Vivemos
do que comer.
23
Agora
vamos saber
Como
o Alferes ficou,
Às
sete horas do dia
Foi
quando se levantou,
Gritou:
acorda soldado
O
menino me roubou.
O
soldado deu um grito
Que
o Alferes se assustou,
E
perguntou: o que foi?
O
soldado suspirou,
Dizendo:
tudo que eu tinha
Aquele
infeliz roubou.
Que
faço? disse: o alferes
Nuzinho
sem poder sair,
Se o
governo souber disso
Pode
até me demitir,
Só
não deserto hoje mesmo
Por
não ter o que vestir.
Ás
quatro horas da tarde
Ainda
estava despido,
E o
chefe da polícia
Já
tinha disso sabido,
Mandou
ver preso o alferes
E
foi logo demitido.
Cancão
chegou em Recife
Cismado
do que houve lá,
Soube
que ia um vapor
Com
destino ao Pará,
Disse
em voz baixa: Alfredo
Vamos
até ao Ceará.
24
Entremos
que ninguém veja
Chegando
a ocasião,
Que
nos veja sem passagem
Você
diz que é meu irmão,
O
resto é por minha conta
Eu
desenrolo a questão.
Entraram
pelo rebordo
Sem
a ninguém dizer nada,
Já
perto do Ceará
Foram
então fazer chamada,
Cancão
disse a Alfredo
–
Não conte história furada.
Perguntou
o comissário:
–
Meninos vocês quem são?
–
Nós somos dois passageiros
Respondeu
sério Cancão,
–
Passageiros sem bilhetes
Para
onde vocês vão?
Papai
comprou as passagens
E
mandou nos trazer cá,
– Em que vapor mandou ele?
Diz
Cancão: no Ceará,
Ele
mora no Recife
Mamãe
mora no Pará.
–
Este vapor é o Olinda
O
Ceará lá ficou,
Cancão
exclamou de forma
Que
o comissário chorou,
Disse:
maninho a nossa roupa
Ai
meu Deus! que jeito eu dou!
25
Perguntou
o comandante:
–
Menino seu pai quem é?
Disse
Cancão: é fiscal
No
Recife, em São José,
Minha
mãe é professora
E se
chama Salomé.
Perguntou
o comandante:
–
Como o senhor é chamado?
O
Cancão de Fogo disse:
O
meu nome é Romualdo,
– O
nome de seu irmão?
Disse
Cancão: é Reinaldo.
Então
disse o comandante
–
Quando chegar em Belém,
Mando
chamar sua mãe
E o
delegado também,
Lá é
que posso saber
O
erro de onde vem.
O
comandante fiado
Que
eles eram do Pará,
Não os
privou que saltassem
No
porto do Ceará,
O
Cancão de Fogo disse:
– Um
burro é que volta lá.
Naquele
mesmo vapor
A
precatória seguiu,
Denunciando
o Cancão
Quando
no quartel dormiu,
Porém
ia no correio
O
comandante não viu.
26
Saltaram
no Ceará
Cancão
ia descuidado,
Andando
casualmente
Na
porta do delegado,
Este
disse: esteja preso
Você
foi denunciado.
Você
é Cancão de Fogo
Da
Paraíba do Norte,
Você
lá só falta ser
Cúmplice
em pena de morte,
Cancão
sorriu e disse:
–
Meu senhor, só sendo sorte.
–
Sorte por quê? Perguntou
O
homem impressionado,
Disse
Cancão: já ali
Por
um subdelegado,
Nós
dois já não fomos presos
Por
papai ser empregado.
– E
você tem pai aqui
Disse
Cancão: tem acolá,
Diz
o delegado então:
–
Chame o seu irmão e vá,
Diga
a seu pai que o chamo
E
seu irmão fique lá.
Então
disse o delegado:
–
Espere um pouquinho aí,
Deu
a bengala a Cancão
E
disse: leve isso ali,
Diga
ao subdelegado
Que
traga seu pai aqui.
27
O
Cancão saiu sorrindo
E
disse: estou arrumado,
Chegou
onde estava o moço
E
deu o seguinte recado,
Está
aqui esta bengala
Que
mandou lhe o delegado.
Ele me ordena que eu
Diga
a vossa senhoria,
Que
lhe mande cem mil réis
Que ele
já aparecia,
E
mandou essa bengala
Que
o senhor já conhecia.
O
moço deu-lhe o dinheiro
Cancão
de Fogo voltou,
Disse
a Alfredo eu agora
Pensarei
por onde vou,
A
bomba demora pouco
Se
ainda não estourou.
Saímos
da capital
Ganhamos
a capoeira,
Não havemos
de passar
Em
lugar que tenha feira,
Perder
cem mil réis assim
Não
é boa a brincadeira.
E
voltou com a bengala
Que
tinha lindos anéis,
Disse
Cancão: isso aqui
Vale
quatrocentos mil réis,
Porém
não me custou nada
Eu
vendo até por dez.
28
Quando
o delegado soube
Disso
que tinha se dado,
E
que a bengala dele
O
Cancão tinha levado,
De
raiva que teve ali
Quase
morre asfixiado.
Dava
duzentos mil réis
A
quem trouxesse Cancão,
Dava
o valor da bengala
Como
gratificação,
Chorava
como criança
E rolava
pelo chão.
Disse
Cancão: procuremos
Um
mato muito fechado,
Então
só devemos ir
Por
onde tenha roçado,
Onde
tenha milho verde
Que
a noite se coma assado.
O
Alfredo tinha um jeito
Para
os olhos revirar,
E
representava um cego
Que
podia se jurar,
Até
um médico oculista
Era
fácil se enganar.
E
dava um jeito na boca
Que
parecia aleijado,
O
Cancão de Fogo disse:
–
Agora tome cuidado,
Você
vai para a cidade
Para
ver o que é passado.
29
Alfredo
foi a cidade
E lá
viu os movimentos,
Parecia
um aleijado
E
cego dos mais nojentos,
Soube
de tudo que havia
Trouxe
três mil e trezentos.
Cancão
disse a Alfredo:
–
Amanhã vá preparado,
Converse
com o vigário
Mas
assim como aleijado,
Pregue-lhe
uma das minhas
E
peça-lhe um atestado.
Você
diz: senhor vigário
Eu
venho aqui lhe consultar,
Minha
mãe antes da morte
Me
pediu para pagar,
Uma
promessa que fez
Para
um santo festejar.
Pedir
pelo mundo esmola
Exposto
a todo rigor,
Para
São Sebastião
E
entregar ao senhor,
Vossa
mercê não estando
Eu
desse o outro pastor.
Se
ele der o atestado
Já
vê que aí não há nada,
Você
peça lhe uma coroa
E a
tolha emprestada,
Nós
com esses documentos
Faremos
boa jornada.
30
O
Alfredo arrumou tudo
Quando
o Cancão o esperava,
Disse
o vigário consigo:
–
Atrás de ti eu andava,
Um
conto de réis de esmola
O
vigário projetava.
Então
deu-lhe o atestado
Escrito
com perfeição,
Com
carimbo da igreja
Feito
por Tabelião,
De
forma que só estava
De
acordo com Cancão.
Mandou-lhe
fazer três vestes
De
lutos para ele andar,
E lhe
disse: das esmolas
Você
não pode tirar,
Um
vintém dela não tire
Sob
pena de pecar.
E
quando Alfredo chegou
Cancão
ficou satisfeito,
Deu-lhe
um abraço dizendo:
És
um menino direito,
Presta
atenção aos mandados
Tudo
que faz é bem feito.
Meia-noite
eles saíram
Quando
o dia amanheceu,
Dizia
Cancão: neste mundo
Não
há mestre como eu,
Disse:
nem o diabo pode
Escapar
dum laço meu.
31
Com
seis dias de viagem
Começaram
a esmolar,
Cancão
aonde pedia
Fazia
gente chorar,
A
fim de dar uma esmola
Era
capaz de furtar.
A
graça era quando eles
Chegava
num povoado,
O
Cancão com uma coroa
Ia
pedindo de um lado,
Então
Alfredo pedia
Como
cego e aleijado.
No
Ceará não ficou
Uma
só povoação,
Que
não fosse explorada
Por
Alfredo e por Cancão,
E
nunca chegou o dia
Que
gastasse um tostão.
Sou
forçado aqui leitores
A
partir as aventuras,
Desse
quengo inteligente
Esse
rei das travessuras,
Que já
foi classificado
Como
o rei das diabruras.
Leia
o segundo volume
Desse
livro apreciado,
E
veja o que fez Cancão
Depois
de tudo arranjado,
Com
o dinheiro das esmolas
Deixando
o padre danado. FIM
32
A
VIDA DE CANCÃO DE FOGO
E O SEU
TESTAMENTO
CONCLUSÃO
Eis
o final formidável
Da
história de Cancão,
O
ente mais trapaceiro
Que
houve nesta nação,
Pra
ele tudo era fácil
Sem
precisar ser ladrão.
Ficou
no outro volume
O
Alfredo e o Cancão,
Pedindo
esmola ao povo
Para
São Sebastião,
Mas
o santo nem sequer
Viu
a sombra dum tostão.
Ao
cabo de quatro meses
O
vigário já cismado,
Foi
aonde Alfredo disse
Que
tinha sido criado,
Lhe
disseram que ali
Tempo
algum tinha morado.
01
O
padre ficou sem fala
Ao
saber daquele horror,
Torceu-se
como serpente
No
mais tremendo furor,
Subiu
o sangue a cabeça
Quase
dar-lhe um estupor.
Enquanto
isso Cancão
Junto
com seu secretário,
Sorria
bem satisfeito
Dizendo:
que pare otário,
Desta
vez nós ensinamos
O padre
nosso ao vigário.
Um
dia Cancão de Fogo
Consultou
o companheiro,
Dizendo:
somos felizes
Temos
bastante dinheiro,
Já
temos mais de três contos
Vamos
ao Rio de Janeiro?
–
Pode ser que aquele padre
Venha
nos incomodar,
E
nós estando distante
É
fácil de se escapar,
Lá
comeremos do bom
Pois
temos para gastar.
Alfredo
achou muito boa
A
ideia de Cancão,
E
disse vamos amigo
Sou
ave de arribação,
Aonde
não me servir
Mudemos
de posição.
02
E
seguiram para o Rio
Como
Cancão calculou,
Depois
de oito ou dez dias
A
precatória chegou,
Nem
notícia de Cancão
A
autoridade achou.
Todos
dois estavam em Crato
Cancão
disse: companheiro,
Saímos
de madrugada
Não
se passa em Juazeiro,
E
vamos diretamente
Para
o Rio de Janeiro.
Passaram
em Pernambuco
Entraram
pela Bahia,
Dez,
doze, quatorze léguas
Tiravam
eles num dia,
Vendo
a hora e o instante
Que
uma onça os comia.
Entraram
por matas virgens
No
cipoal intrincado,
Um
dormia sobre as folhas
Outro
dormia trepado,
Comiam
frutas da mata
Sempre
andavam com cuidado.
Já
no Estado do Rio
Um
dia deram uma errada,
Dormiram
numa fazenda
Saíram
de madrugada,
Deixaram
o caminho certo
Seguiram
por uma estrada.
03
Cancão
disse para Alfredo:
Ouça
aguda, e vista alerta,
Para
não sermos pegados
Juntinhos
de boca aberta,
Aonde
nós estivermos
Todo
perigo é na certa.
E
andaram todo dia
Não
viram uma só morada,
Tinham
saído do rancho
À
uma da madrugada,
Água
achavam que bebiam
Porém
o que comer nada.
À
noite faziam fogo
Um
velava outro dormia,
A
onça rosnava perto
Cancão
de Fogo dizia:
Se
está com frio, tem fogo
Se
está só, tem companhia.
Às
seis horas da manhã
Se
levantaram e seguiram,
Eram
três horas da tarde
Quando
uma casa eles viram,
Cheiro
duma feijoada
Chegando
perto sentiram.
Cancão
lambeu logo os beiços
Alfredo
riu sem querer,
E
disse para Cancão:
Agora
vamos comer,
Uma
empreitada dessas
Nós
não podemos perder.
04
Era
um lugar esquisito
Somente
uma casa havia,
Uma
crioula acolá
Com
quatro filhos vivia,
Dali
até doze léguas
Não
tinha uma moradia.
A
crioula cozinhava
Era
fora do oitão,
Eles
viram a panela
Que
cozinhava o feijão,
A
crioula pisava milho
Estava
cozinhando um pão.
Cancão
de Fogo chegou
Cumprimentou-a
contente,
A
negra cravou-lhe os olhos
Que
parecia serpente,
O
Cancão de Fogo disse:
– Eu
pensava diferente!
O
Cancão de Fogo disse:
–
Não podemos viajar,
Vossa
excelência me arrume
O
que se possa jantar,
Temos
dinheiro e pagamos
O
que a senhora cobrar.
A
negra olhou e disse:
– Já
por ali vagabundo,
Gente
branca para mim
É a
pior deste mundo,
Você
pode se danar
E
morrer de olho fundo.
05
Cancão
olhou para Alfredo
E
ele compreendeu,
Aquele
olhar de Cancão
Alfredo
logo entendeu,
De
novo olharam pra negra
Ela
então se enfureceu.
A
negra chamou um filho
Dizendo:
João venha cá,
Vá a
baixa do capim
E
mude a cabra de lá,
E
volte com muita pressa
Preciso
de você já.
Disse
a Cancão e ao outro:
–
Vocês vão logo saindo,
Tem
aqui um filho meu
Que
mata gente sorrindo,
Eles
saíram voltando
Por
onde já tinham vindo.
O
Cancão de Fogo disse:
Nós
havemos de voltar,
Para
não darmos motivo
A
negra desconfiar,
Se
ela vir por onde vamos
É
fácil de nos achar.
Alfredo
então perguntou-lhe
E
como se faz agora?
As
tripas estão roncando
A
fome já me devora.
O
que nós vamos fazer
Para
a negra dar o fora?
06
Disse
Cancão a Alfredo:
–
Para poder conseguir,
Roubar
aquela panela
É
preciso você ir
Se
esconder atrás da casa
Até
a negra sair.
–
Pra negra sair de lá
Meu
plano já está formado,
Faça
como estou dizendo
Pro
golpe não ser errado,
Vou
dizer-lhe mais ou menos
O
que tenho planejado.
– Eu
pego aquele moleque
E
vou com ele à madeira,
A
negra há de vir a mim
E
você não faça asneira,
Pegue
a panela com tudo
E
saia em grande carreira.
–
Antes da negra chegar
A minha
carreira é feia,
Procure
a estrada na frente
Me
espere a légua e meia,
E
procure logo o mato
Aonde
se bote a ceia.
Alfredo
entusiasmou-se
Com
o plano de Cancão,
E
disse: aperte esses ossos
És
um homem de ação,
Penso
até que no diabo
Tu
já passaste a lição.
07
De
onde estavam escondidos
Viram
um moleque passar,
Alfredo
correu depressa
Para
poder atocaiar,
A
panela que a negra
Tinha
de abandonar.
Cancão
pegou o moleque
Deitou-lhe
o cipó no lombo,
A
negra partiu danada
Com
o bacamarte no ombro,
Cancão
soltou o moleque
Disse:
com chumbo não zombo.
A
negra ainda atirou-lhe
Mas
o tiro não pegou,
A
negra uivava de ira
E de
que forma ficou,
Depois
que chegou em casa
E a
panela não achou?
A
negra soltava praga
Se
rasgava e se mordia,
Puxava
irada os cabelos
Babava
sangue e cuspia,
Suas
pragas reboavam
Só o
eco respondia.
–
Ah! cachorro da moléstia
Infeliz
quem te gerou!
Ladrão,
infeliz, infame
Satanás
te batizou,
És o
monstro mais nojento
Que
nosso mundo criou!
08
Cancão
chegou adiante
Voltou
por dentro do mato,
Dizendo
com seus botões:
–
Quem morre de fome é pato,
Quem
trabalha deus ajuda
O
pão é muito barato.
– Eu
não vou morrer de fome
Achando
onde comer,
Nem
ficar de goela seca
Tendo
água pra beber,
Não
vou andar compassado
Sendo
preciso correr.
Cancão
de Fogo saiu
Correndo
sem dizer nada,
Ia
por dentro do mato
Beirando
sempre a estrada,
Onde
encontrou o Alfredo
Já
com a ceia botada.
Era
feijão mulatinho
Com
ossada de carneiro,
Cancão
quando acabou disse:
– Já
vi hotel barateiro,
Enche-se
bem a barriga
E
não se gasta dinheiro.
Os
programas de Cancão
Tinha
que se apreciar,
Porque
o Cancão dizia:
Nada
faz-me admirar,
Aquele
que sorrir hoje
Amanhã
tem que chorar.
09
–
Bem só pode está o sol
Porque
ninguém o alcança,
Haja
no mundo o que houver
O
sol lá nem se balança,
Enquanto
a fortuna dorme
A
desgraça não descansa.
–
Pai e mãe é muito bom
Barriga
cheia é melhor,
A
moléstia é bem ruim
A
morte é muito pior,
O
poder de Deus é grande
Porém
o mato é maior.
Disse
o Cancão ao Alfredo
Assim
se deve roubar,
Não
é crime e nem pecado
Eu
falei para comprar,
A
negra não quis vender-me
Deu-me
direito a pegar.
– Se
ela fosse de acordo
Como
o que eu desejava,
Não
ficava sem comida
Eu
ainda lhe pagava,
Não
açoitava o moleque
E
tudo na paz ficava.
Diz
Alfredo: e eu calculo
O
ódio que ficou nela,
Vê o
moleque apanhado
Vê
seu fogão sem panela,
Confesso
que desmaiava
Só
em ver a cara dela.
10
Depois
de terem almoçado
Procuraram
descansar,
Na
manhã do outro dia
Trataram
de caminhar,
Mesmo
já faltava pouco
Não
queriam demorar.
Afinal
chegaram ao Rio
Quando
estavam hospedados,
Na
mesa estavam almoçando
Chegaram
cinco soldados,
Oficiais
de justiça
E
dois subdelegados.
Alfredo
olhou pra Cancão
Cancão
também o olhou,
Como
quem diz: caro amigo
A
nossa hora soou,
É
bom logo despedir-nos
Porque
a cana chegou.
Ambos
ficaram surpresos
Mas
sem dar demonstração,
Continuaram
comendo
Cada
qual na impressão,
Se
conviria fugir
Ou
entregar-se a prisão.
–
Quem é o Cancão de Fogo?
Um dos
homens perguntou,
–
Sou eu, respondeu Cancão:
– As
suas ordens estou,
–
Está preso: disse um
O
Cancão não se alterou.
11
O
oficial da justiça
Leu
claramente o mandado,
Então
o Cancão de Fogo
Disse
ao subdelegado:
Dê-me
licença almoçar
Que
ficarei obrigado.
Toda
gente do hotel
Prestou
grande atenção,
Tudo
parou o talher
Olhando
para o Cancão,
Até
as autoridades
Fizeram
admiração.
Quando
acabou de almoçar
Pediu
a conta e pagou,
Tirou
um conto de réis
Ao
companheiro entregou,
Disse
ao subdelegado
Agora
querendo, eu vou.
Alfredo
disse a Cancão:
É
pena ter que deixa-lo,
Lamento
da minha parte
Em
não poder ajuda-lo,
Esta
é uma das viagens
Que
não posso acompanha-lo.
Então
lhe disse Cancão:
Você
faça o que aprouver,
E
veja se pode ir
No
lugar que eu estiver,
E
demais até um dia
Quando
o governo quiser.
12
Foi
Cancão a chefatura
Para
ser interrogado,
Disse
o chefe de polícia:
– O
senhor é viciado,
Como
foi no Ceará
O
roubo do delegado?
O
Cancão de Fogo disse:
– Lá
eu não roubei ninguém,
Fui
a um mandado dele
Ele
não deu-me um vintém,
Eu
fiquei com a bengala
Que
não sou pai de ninguém.
–
Qualquer um faria o mesmo
Pra
qualquer um cascudo,
Não
era empregado dele
Nunca
o vi tão carrancudo,
Ia
trabalhar de graça
Sou algum
pai de pançudo?
– E
Cadê os cem mil réis
Lá
do subdelegado?
–
Vossa excelência crê nisso?
Isso
é plano mal traçado,
Quem
é que dar cem mil réis
A
quem está denunciado?
– E
a roupa do alferes
Que
vossa mercê carregou?
–
Foi para me defender
Foi
isso que me salvou,
Ele,
pra que me prendeu
Quando
ninguém o mandou?
13
Disse
o chefe de polícia:
– O
leve para a marinha,
O
Cancão de Fogo disse:
–
Essa vontade eu já tinha,
A
desgraça ia em viagem
Quando
a fortuna já vinha.
–
Tomara que me aceitem
Disse
ele ao delegado,
A
tempos que esperava
Esse
momento chegado,
Espero
que não descubram
Que
eu sofro de puxado.
Então
lhe disse a polícia:
–
Sinto muito meu rapaz,
Essa
história de puxado
É um
plano bem sagaz,
Mas
desculpe que lhe diga
Seus
truques não pegam mais.
Mas
o médico da marinha
Estava
nesta ocasião,
O
recusou por doente
Da
laringe e do pulmão,
Achou
ser uma injustiça
Não
se proteger Cancão.
Às quatro
horas da tarde
Cancão
de Fogo chegou,
Dizendo:
bendito seja
O
que me denunciou,
Há males
que trazem o bem
Como
este agora chegou.
14
Depois
de solto Cancão
Seguiu
junto com Alfredo,
Enganado
até gatuno
Como
estradeiro rochedo
Deu
quengada em fazendeiro
Pois
Cancão fazia medo.
Enrolou
o quanto quis
Depois
chegou o momento
Desejando
ter família
Arranjou
um casamento,
Como
ele estava doente
Quis
fazer seu testamento.
O
Testamento de
Cancão
de Fogo
Nesta
história o leitor viu
Quem
era Cancão de Fogo,
Era
aquele que dizia:
A
vida é mesmo que um jogo,
Pra
morrer não falta tempo
Pra
dar não precisa rogo.
–
Roubar a quem tem demais
É
forma de caridade,
Tirar
dez de quem tem vinte
É
forma de regularidade,
Quem
não precisa de tudo
Basta
ficar-lhe a metade.
15
– Da
forma que vai ao mundo
Só
poderá triunfar,
Aqueles
que tem astúcia
E
não se deixam enganar,
No
mar da vida se afoga
Quem
nunca soube nadar.
Foi
o que Cancão de Fogo
Disse:
na hora da morte,
A
fortuna tem o peso
Que
tem a tirana sorte,
A
desgraça quando vem
Não
respeita quem é forte.
Quando
ele viu que morria
Chamou
a mulher pra junto,
E
disse: minha mulher
Não
precisa chorar muito,
Não
há tempo mais perdido
Do
que chorar por defunto.
Disse
um filho: eu vou chamar
Depressa
um facultativo,
Ali
tem um médico bom
Inteligente
e ativo,
Disse
Cancão: é asneira
Dar
remédio a quem está vivo.
–
Inda que ganhe desta vez
Doutra
tenha que perder,
Porque
é ordem celeste
Não
podemos inverter,
É
este o lema da terra
Nascer,
crescer e morrer.
16
–
Agora depois de eu morto
Você
o manda chamar,
Pergunte
quanto ele quer
Para
me ressuscitar,
E
diga logo: só pago
Se
meu pai se levantar.
–
Isto não! Disse-lhe o filho
Morrendo,
aí se liquida,
Disse
lhe Cancão: meu filho
Isso
é coisa conhecida,
Aquele
que expulsa morte
Não
faz com que volte a vida.
A
pessoa que tomar
Remédio
pra não morrer,
É
como quem salga carne
Depois
de apodrecer,
Como
rezar pra São Bento
Depois
da cobra morder.
Chegou
um frade e lhe disse:
–
Venho ajudá-lo a morrer
Disse o Cancão de Fogo
Tenho
que agradecer,
Sente-se
aí para um canto
Cuide
logo em se torcer.
–
Torcer como? Disse o frade
Disse
Cancão: meu amigo,
O
senhor não vem morrer
Para
ir junto comigo?
O
frade respondeu: votes
Um
burro é quem vai contigo.
17
O
Cancão de Fogo disse:
Se
eu não tivesse prostrado,
Você
tinha que sair
Cortês
e civilizado,
E só
entraria em casa
Depois
que fosse chamado.
–
Porque pra eu liquidar-me
Não
preciso de vigia,
Embora
depois de morto
Leve
minha companhia,
Porque
o defunto é cego
Só
anda se tiver guia.
–
Meu irmão, lhe disse o frade:
Eu
vim aqui exortá-lo,
O
inferno está aberto
E
diabo a esperá-lo,
As
chamas do purgatório
Estão
prontas pra queimá-lo.
– Eu
entrei na tua casa
Foi
para te confessar,
Pois
levas grande pecado
Para
o leito tumular,
Vim
salvar-te do diabo
Para
ele não te levar.
Disse-lhe
Cancão de Fogo:
Frade
quero que me dê,
Explicações
do inferno
Lhe
peço a vossa mercê,
No
inferno inda haverá
Um
diabo como você?
18
– Eu
não mandei-o chamar
Nós
não temos amizade,
Eu
nunca quis relação
Com
cigano nem com frade,
Apenas
tenho a dizer-lhe
Dane-se
por caridade!
O
frade saiu dali
Se
benzendo amedrontado,
Dizendo:
aquilo é o cão
Em
um ente transformado,
Me
valha o rosário bento
E o
madeiro sagrado!
Cancão
chamou a mulher
A
quem tinha estimação,
Disse:
não chore mulher
Por
minha consumação,
Reze
para encontrar outro
Marido
como Cancão.
–
Agora quero que chame
O
juiz e o escrivão,
De
alguns bens que me restam
Vou
fazer uma doação,
Vou
fazer publicamente
Minha
recomendação.
Encontrou
em casa o juiz
Junto
com o tabelião,
Foram
logo para o quarto
Onde
estava o Cancão,
O
juiz disse: aqui estou
A
sua disposição.
19
Disse
o juiz: o senhor
Tem
uns bens para deixar?
–
Sim senhor, disse Cancão
Eu
não os posso levar,
Se
alguém quiser ir comigo
Tem
um bom frete a ganhar.
Disse
o escrivão: não brinque
Repare
que a morte é crua!
–
Pode até ser cozinhada
Pode
vir vestida ou nua,
Eu
brinco aqui com a minha
Você
lá respeite a sua.
O
juiz lhe perguntou:
Você
não tem dois sobrados,
Quer
deixa-los pra alguém?
Disse
Cancão: estão vexados!
Ou
vocês são dois gatunos,
Ou
são meus filhos bastardos.
Disse
o juiz: ora essa
Entenda
essa charada,
Gente
em casa me esperando
E o
senhor dando massada,
Eu fazendo
falta lá
Devido
a sua embrulhada!
Disse
Cancão: meu amigo
Você
assim não vai bem,
Vexames
fazem fadigas
Difícil
escapar alguém,
Padre,
juiz, escrivão
Não
fazem falta a ninguém.
20
Portanto
não tenho pressa
Para
lhe dar atenção,
Mas
depois de tudo feito
E de
nossa transação,
O
senhor dirá consigo
Como
é bondoso o Cancão!
Puxou
um papel lacrado
De
dentro do travesseiro,
Entregou
para o juiz
E
disse: veja primeiro,
Veja
quem eu constituo
Como
meu testamenteiro.
–
Sessenta contos de réis
Que
tenho depositados,
No
Banco Nacional
Três
casas e dois sobrados,
Estão
fora do testamento
Serão
inventariados.
O
juiz bem satisfeito
Mostrando
contentamento,
Sua
voz ficou macia
Quase
dar-lhe um passamento,
De
ver seu nome gravado
Nas folhas
do testamento.
“Ao
Doutor João de Cerqueira
“escrivão
dos testamentos,
“deixo
em Belo Horizonte
“na
praça dos Sacramentos,
“a
casa número cem
“com
todos compartimentos.
21
“Ao
Doutor João de Lira
“eu
deixei em Canta-Galo,
“a
casa número seis
“na
rua de São Gonçalo,
“e o
Sítio dos Ausentes
“na
capital de São Paulo”
Disse
o juiz: oh! senhor
É
muita dignidade!
O
senhor dar tanta coisa
Por
sua livre vontade,
A
mim e ao escrivão
Isso
é muita bondade!
–
Não doutor, disse Cancão
Meus
filhos ficam aí,
Podem
precisar um dia
Os
senhores são daqui,
Disse
o doutor: precisando
Já
sabe eu moro ali.
Saíram
numa palestra
O
doutor e o escrivão,
Dizendo
um para o outro
Foi
sublime aquela ação,
Só
nós dois livraríamos
Dum
calote de Cancão.
Morreu
o Cancão de Fogo
A
mulher participou,
Poucos
minutos depois
O
juiz se apresentou,
Daí
a uns dez minutos
O
tabelião chegou.
22
Disse
o juiz a mulher:
–
Seu marido já morreu,
Com
relação ao enterro
Deixe
que quem faz sou eu,
Eu
não quero que dependa
Um
tostão do que é seu.
Fique
com esta importância
Porque
talvez necessite,
Mandou
fazer catacumba
Fez
quem fez todo convite,
Disse
à mulher de Cancão
Com
a senhora estou quite.
Depois
de quarenta dias
Que
Cancão tinha morrido,
Procedeu-se
o inventário
Foi
tudo bem dividido,
Filhos
e mulher de Cancão
Cada
qual foi bem servido.
O
juiz depois pensou
Que
havia precisão,
De
exigir a escritura
Da
família de Cancão,
Chegou
lá não encontrou
Quem
desse definição.
Mas
depois disse consigo:
– Eu
tenho provas legais,
Provo
com o testamento
Não
preciso nada mais,
Tratou
de pegar o trem
Partiu
pra Minas Gerais.
23
Saltou
em Belo Horizonte
Foi
ao hotel, almoçou,
Indagando
aonde era
Uma
pessoa ensinou,
A
rua até era perto
Num
instante ele chegou.
Quando
o doutor viu o prédio
Sorriu-se
aí de contente,
Examinou-o
por fora
Achou-o
muito excelente,
Tinha
cem palmos de fundo
E
setenta e dois de frente.
Então
batendo na porta
Com
pouco um homem chegou,
–
Que deseja cavalheiro?
O
homem interrogou,
–
Sou o dono desse prédio
O
homem aí o fitou.
– De
qual prédio, meu senhor?
–
deste aí que você mora;
–
Isto é conto de vigário
É
cedo, inda não é hora,
Aí
bateu o postigo
Nem
falou mais, foi embora.
O
Doutor João de Cerqueira
Disse:
momentos danados!
Ficou
possesso de tudo
Porém
minutos passados,
Foi
ao cartório e mandou
Dar
busca nos registrados.
24
Foi
ao cartório e bateu
Saiu
o tabelião,
O
doutor disse: me consta
Que
o senhor é escrivão,
E eu
venho em seu cartório
Decidir
uma questão.
E
puxou ali do bolso
Os
papéis do testamento,
E
disse: colega veja
Se
acha este apontamento,
Veja
se não é legal
Todo
este documento.
Encontrou
a escritura
Da
casa já referida,
Vendida
pelo doutor
Félix
Teixeira Guarida,
Comprada
por uma órfã
Da
viúva Margarida.
–
Colega, como foi isso?
Pergunta
o tabelião,
–
Foi o conto dum vigário
Passado
por um ladrão,
Disse
o tabelião: esse
É
igualmente a Cancão.
–
Pois foi esse tal Cancão
Que
mora no Rio de Janeiro,
Disse
o tabelião:
– É
esse grande estradeiro,
Quando
ele era pequeno
Roubou
este mundo inteiro.
25
–
Aqui mesmo uma vez
Uma
noite de São João,
Um
ladrão veio roubá-lo
Ele
roubou o ladrão,
E o
gatuno por isso
Acabou-se
na prisão.
– O
ladrão tinha dois contos
Que
de alguém tinha roubado,
E
julgando que Cancão
Fosse
um vendilhão de gado,
Foi
ver se passava um quengo
Foi
quem saiu quengado.
Disse
o gatuno a Cancão:
–
Patrão, eu tenho dinheiro,
Desejava
fazer sérias
Transações
com o cavalheiro,
Disse
Cancão: é preciso
Que
eu examine-o primeiro.
O
ladrão ficou imóvel
Ficou
bastante assombrado,
O
Cancão de Fogo disse:
Ladrão,
eu sou delegado,
Desde
três horas da tarde
Que
tenho sido avisado.
O
ladrão ali ficou
Sem
saber o que fizesse,
Pensou,
aquele dinheiro
Se
acaso Cancão quisesse,
Seria
melhor que ele
Uma
escapula desse.
26
–
Meu moço disse o ladrão
Por
vida dos nossos pais,
Por
vida da vossa mãe
Me
deixe aqui em paz.
Me
solte que lhe prometo
Nunca
hei de roubar mais.
Aí
tirou o dinheiro
Disse:
senhor delegado,
Pegue
dois contos de réis
Aceite
do seu criado,
Cancão
pegou o dinheiro
E
disse: vá com cuidado.
–
Botou-lhe um cerco por fora
Adiante
denunciou-o,
A
patrulha foi atrás
Minutos
depois pegou-o,
O
gatuno conheceu
Que
outro gatuno roubou-o.
O
gatuno confessou
Quando
a polícia o prendeu,
Procuraram
o Cancão
Ele
desapareceu,
O
gatuno na cadeia
Deu-lhe
bixiga e morreu.
– Um
preto aqui fazendeiro
No
tempo da escravidão,
Botou-o
como empregado
E
ele uma ocasião,
Foi
a um comprador de escravos
E lá
vendeu o patrão.
27
–
Meteu o cobre no bolso
E
ninguém o pode achar,
O
preto viu-se apertado
Para
se desembaraçar,
O
que Cancão tinha feito
Deu
trabalho desmanchar.
–
Passou quengada enormes
Com
tanta facilidade,
Então
nas empresas dele
Tinha
tal felicidade,
Que
nunca pode cair
Em
poder de autoridade.
– Eu
não sei como o colega
Mora
no Rio de Janeiro,
Não
sabia que o Cancão
Era
o maior estradeiro,
–
Estradeiro não, ladrão
Um
falsário verdadeiro!
Também
o Dr. Cerqueira
Ficou
encolerizado,
Passou
em Belo Horizonte
Uma
noite incomodado,
Pelo
conto do vigário
Que
Cancão tinha passado.
Dizia
sou escrivão:
Nunca
roubei um vintém,
Trinta
quarenta mil réis
Não
é roubo de ninguém,
O
roubo que eu considero
É o
que passa de cem!
28
– Eu
fazer o enterro
Do
diabo desse ladrão,
Gastei
seiscentos mil réis
Sem
a mínima precisão,
Dei
sepultura ao gatuno
Como
se fosse um barão!
–
Raios te parta, danado
Deus
há de te castigar!
O
prejuízo que tive
No
inferno hás de pagar!
Tenho
fé na Providência
Que
lá hás de amargar!
–
Quase trezentos mil réis
Nessa
viagem gastei,
Quando
o diabo morreu
Quantas
passadas eu dei,
Gastei
meu tempo e dinheiro
Veja
agora o que lucrei!
Também
voltou apitando
Com
a carranca mais feia,
Chegou
em casa e deitou-se
Não
quis mais saber da ceia,
E lá
soube que o juiz
Já
tinha ido a cadeia.
Porque
foi em Canta-Galo
Ver
a casa que herdou,
Na
rua de São Gonçalo
A
dita casa encontrou,
O
morador era dono
Já
que ele o intimou.
29
Como
o dono não saiu
Botou
a pulso pra fora,
O
homem foi a polícia
Prenderam
na mesma hora,
E
botaram num asilo
Quase
que não vai embora.
O
escrivão logo cedo
Foi
a casa de Cancão,
E
disse para a mulher:
Seu
marido era um ladrão,
Depois
de morrer roubou-me
Eu
sendo dele escrivão.
– A
senhora viu a casa
Que
ele pra mim deixou-a,
Sendo
a casa de uma órfã
Que
o diabo não comprou-a,
Disse
a mulher de Cancão:
–
Doutor ele não levou-a.
– O
meu marido deixou
O
prédio que o senhor diz,
Deixou
vinte um Estados
Que
tem o nosso país,
Ficou
para quem quisesse
Ele
nada disso quis.
O
doutor corou e disse:
–
Também garanto a senhora,
Se
Deus botá-lo no céu
Pode
esperar a hora,
De
uma quengada dele
Que
bota até Deus pra fora.
30
–
Porque eu nunca achei
Ladrão
fino igual aquele,
Desgraçado
do defunto
Que
sepultar-se com ele,
Eu
acho Cancão capaz
De
roubar os ossos dele.
– E a
senhora também
Desculpe
a minha ousadia,
Vossa
mercê herdou dele
Costume
e categoria,
Pois
a mulher do filósofo
Aprende
a filosofia.
A
mulher disse doutor:
Meu
marido não roubava,
Mas
com algum escrivão
Ele
se comunicava,
Sendo
um pouco inteligente
Muitas
coisas decorava.
–
Ele chamou os senhores
Quando
estava aqui prostrado,
Porque
queria imitar
O
Cristo crucificado,
Queria
morrer também
Com
um ladrão de cada lado?
–
Como sabe as pessoas
Estando
perto de morrer,
Às
vezes sentem remorsos
E
temem de se perder,
Dizem
que no outro mundo
A
pessoa há de sofrer.
31
– O
doutor não viu o frade
Vir
também por sua vez,
E
não viu o meu marido
Que
barulho logo fez?
Disse:
eu chamei dois ladrões
Não
é preciso de três.
Aí
lhe disse o escrivão:
– Dê
licença eu vou embora,
Sou
obrigado a dizer
Que
tenho medo da senhora,
Eu
acho vossa excelência
Capaz
de vender-me agora.
–
Até logo, senhor doutor
Disse
a mulher de Cancão,
Aqui
fico às suas ordens
Se
acaso houver precisão,
Tem
uma criada aqui
À
sua disposição.
–
Dana-te cachorra doida!
Disse
o escrivão correndo,
O
diabo é quem vem mais cá
Ainda
estando morrendo,
O
quengo do teu marido
Parece
que em ti estou vendo! –FIM
32
Eu procurei tanto isso, meu pai sempre me contava as histórias desse cordel, graças a Deus e a você que postou isso posso ler pra ele que continua lúcido aos 91 anos. Muito Obrigada <3
ResponderExcluirAcabei de ouvir meu pai contar uma historia sobre Cancão de fogo e vou ler para ele agora ele tem 80 anos.
ResponderExcluirDo mesmo jeito kk, também ouvi meu pai contando aí hj ele me falou que era um homem kkk adorei conhecer mais sobre cancão, obrigada pela publicação, meu pai tem 75 anos e é paraibano !!
ResponderExcluirMeu avô contou que ele tinha um livro de Cancão de fogo, então pesquisei, lemos quase todo hoje. Muito obrigada, ele ficou muito contente. Ele fez 97 anos esse mês. Que presente, hein!?
ResponderExcluirSensacional, li literatura de cordel na minha infância... Lembrei do Cancão de fogo, hoje ...Pesquisei e encontrei aqui. Muito obrigado, li todo o conteúdo...
ResponderExcluirLembrei de quando pegava escondido os livros do meu pai. Cancão de fogo era meu preferido. hoje encontrei aqui. Obrigado por disponibilizar um conteúdo tão especial!
ResponderExcluirJayme do Amaral Betim, MG. 26 de novembro de 2020. Voltei aos meus 15 anos de idade, tenho agora 78. Li, Cancao de Fogo na minha adolescência em 1962. Que bom lembrar esta estória!
ResponderExcluirBravo e a unica leitura que sempre gostei
ResponderExcluirMuito bom!
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