sábado, 8 de dezembro de 2018

CORDEL DIGITADO III


A FORÇA DO AMOR
ALONSO E MARINA
Leandro Gomes de Barros

Nestes versos eu descrevo
A força que o amor tem,
Que ninguém pode dizer
Que não há de querer bem,
E amor é como a morte
Que não separa ninguém.

Marina era uma moça
Muita rica e educada,
O pai dela era um barão
Duma família ilustrada,
Mas ela amou Alonso
Que não possuía nada.

Ambos nasceram num sitio
Num dia na mesma tarde,
Pegaram logo a se amar
Com nove anos de idade,
Se todos os dois fossem ricos
Era um casal de igualdade.

Alonso era enjeitado
Sem ter de família o nome,
Criado por um ferreiro
Trapilho passando fome,
Pois quem é criado assim
Todos os dias não come.
                01
Pelas mercês de Marina
Alonso pode estudar,
Marina não tinha mãe
Se sujeitava a tirar,
Do dinheiro do barão
Para Alonso sustentar.

Estava com vinte anos
Dispôs-se um dia Marina,
Disse a Alonso: -- Me peça
Veja o que a sorte destina,
É bom que se saiba logo
O que a sorte determina.

-- Amanhã pelas dez horas
Você vá ver o barão,
Chegue lá declare a ele
Que pretende a minha mão,
Conforme o que ele disser
Eu tomo resolução.

Se não lhe faltar coragem
Havemos de conseguir,
Meu pai não é raio elétrico
Que nos possa consumir,
Ou faz o que nós queremos
Ou então ver eu sair.

Alonso lhe respondeu:
-- Não basta ser um barão,
Titulo comprado não pode
Comprar a um coração,
Ele é mortal como eu
Um de nós perde a ação.
             02
Ele pode deserda-la
Tomar tudo que for seu,
Casar-me com moça rica
Não é interesse meu,
Amo-a mais que minha vida
Escravo do amor sou eu.

No outro dia às dez horas
Alonso foi ao barão,
Chegou com toda coragem
Fez-lhe a declaração,
Que amava a filha dele
Pretendia dela a mão.

Exclamou logo o barão:
-- És assim tão atrevido,
Não respeita mais a mim
Por onde estás tu metido?
Então eu tenho uma filha
Para dar a um bandido?
               
Disse Alonso: -- Senhor barão
Não importa eu ser um pobre,
Sua filha é potentada
Me ama sem eu ser nobre,
Amor não olha riqueza
Inda que a pobreza dobre.

O barão chamou três praças
Deram-lhe voz de prisão,
Arrastaram o pobre Alonso
Como se ele fosse um cão,
Ou fosse algum insolente
Um criminoso ou ladrão.
               03
O barão chamou a filha
Perguntou se tinha dado,
Consentimento a um bandido
Que tinha o injuriado,
Pedindo-lhe a mão da filha
Sendo ele um desgraçado.

Fui eu: -- Respondeu Marina
Que mandei ele pedir,
E amo-o desde pequena
Se o amor não conseguir,
No solo do cemitério
Irei com ele me unir.

O barão corou e disse:
-- Descanse seu coração,
Se você casar com ele
Eu deixo de ser barão,
Pois eu morto a minha cinza
Reconhece o meu brasão.

Eu já mandei o prender
E fiz recomendação,
E não consentisse alguém
Levar-lhe água nem pão,
Creio que mais de dez dias
Não terá de duração.

Disse Marina: -- Meu Pai
Pode se desenganar,
Ainda Alonso morrendo
Ou se atirarem no mar,
Me lançarei no abismo
E vou com ele parar.
              04
-- Porque ele é pobre assim
Não tem pai foi enjeitado,
É pobre mais tem orgulho
De dizer: sou homem honrado,
Pode a sorte o proteger
E ele ser um potentado.

-- Cale – se maldita infeliz!
Gritou irado o barão,
Se articular comigo
Eu boto-a na prisão,
Mato-a debaixo dos ferros
Lhe acabo a opinião.

-- Pode matar disse ela
Satisfaça a sua paixão,
Pode aniquilar meus dias
Não a minha opinião,
Só Deus sabe e mais ninguém
O que tenho no coração.

Se recolheu ao seu quarto
Deixou o pai no salão,
Estudando qual o meio
Dela  enganar o barão,
E como podia tirar
O amante da prisão.

Depois de pensar um pouco
Chamou a criada dela,
Disse que fosse a cadeia
E falasse ao sentinela,
Que ela mandava dizer
Que fosse falar com ela.
                05
Recebe o guarda o recado
E prontamente chegou,
Ela estava no jardim
E logo ao guarda falou,
Não houve aí quem soubesse
A cilada que ela armou.

Disse Marina ao guarda:
-- Você é um desgraçado,
Mil anos que viva aqui
Não passará de soldado,
Solte Alonso que está preso
Que farei um felizardo.

-- Senhora disse o guarda
Isto faz minha desgraça,
Se eu fizer isto seu pai
Acaba até minha raça,
Disse Marina: -- Deserte
Praquê você quer mais praça?

-- Dou-lhe dez contos de réis
Para você o soltar,
Ele vai para o Japão
Onde há de negociar,
Você deserte com ele
Lá pode bem se arrumar.

Ali o guarda saiu
Com sentido no dinheiro,
E pode se aproveitar
Do sono do carcereiro,
Tirou as chaves do bolso
Soltou o prisioneiro.
            06
Chegaram ambos no jardim
Alonso com o soldado,
Ela foi ver o dinheiro
Que há anos tinha guardado,
Achou cem contos de réis
Dinheiro forte acunhado.

Aí disse ela a Alonso
-- Vamos lutar com a sorte,
Fugindo para o Japão
Dou-lhe um falso passaporte,
Com as paixões de meu pai
Você vá não se importe.

-- Quando escrever para mim
Para não ser descoberto,
Bote Januário Mendes
Filho de Herculano Alberto,
As que eu escrever daqui
Vão Inácio Felisberto.

-- Você enricando lá
Depois quando aparecer,
Meu pai estará mais brando
Não odeia mais você,
Se ilude com o dinheiro
Tudo se pode fazer.

Quando foi no outro dia
O barão pode saber,
Que Alonso tinha saído
Deu-lhe febre e quis morrer,
Não assassinou Marina
Por um padre interceder.
               07
Com quatro dias depois
Veio um moço passear,
Foi a casa do barão
E esse deu-lhe um jantar,
O tal moço viu Marina
Pediu-a para casar.

O barão disse que dava
Porém Marina não quis,
Disse-lhe pessoalmente;
-- Comigo não é feliz,
Fora Alonso para mim
Não tem outro no país.

Lhe replicou o barão
-- A força hei de casar,
Este homem é muito rico
Tem bem com que lhe tratar,
Se não me fizeres os gostos
A vida há de te custar.

-- Meu pai respondeu Marina
A morte a mim me faz bem,
O homem que casa a força
Que sentimento bom tem,
Eu sou mulher, mas a força
Não me caso com ninguém.

-- E o senhor cavalheiro
Saiba que está enganado,
Esposa sua eu não sou
Pois assim tenho jurado,
Pode ficar na certeza
Que não logra este bocado.
                  08
Disse o barão: -- Se apronte
Que ela não se governa,
Inda que nisso intervenha
A autoridade eterna,
Casa-se ainda que vá
Ao fundo duma cisterna.

Faltava apenas dois meses
Para a realização,
Quando chegou a precatória
Foi logo as mãos do barão,
Denunciando o tal moço
De assassino e ladrão.

Deste ficou ela livre
Pois a justiça o prendeu,
Porém por caipora dela
Um primo lhe apareceu,
Pedindo-a a casamento
O pai prontamente deu.

Então Marina lhe disse:
-- Meu pai faça o que quiser,
Só me caso com Alonso
Dê o caso no que der,
Homem nenhum neste mundo
Terá a mim por mulher.

O pai já tinha comprado
Um riquíssimo enxoval,
Disse a ela: -- Você casa
Casa por bem ou por mal,
Respondeu ela: -- Meu pai
Prepararei um punhal.
               09
Então escreveu ao primo
Que não viesse casar.
Sob pena de morrer
Era cálculo sem errar,
Pois mesmo nos pés do padre
Ela havia de o matar.

Ele mandou lhe dizer
Que abrandasse o coração,
Se esquecesse do bandido
Que envergonhava o barão,
Que dali a dois dias mais
Ele lhe daria a mão.

Afinal chegou o dia
Que haviam de casar,
Disse Marina consigo:
-- Por certo hei de me acabar,
Que romance interessante
Alguém de mim vai formar.

Estava o altar preparado
Um bispo e um capelão,
O presidente da província
Que era amigo do barão,
A sala estava repleta
De gente de posição.

As criadas de Marina
Vestiram um rico enxoval,
Ela disse a uma delas:
-- Mande dobrar um sinal,
E por baixo da sua roupa
Colocou logo um punhal.
                 10
Chegou ao pé do altar
Mesmo na ocasião,
Que o bispo preparou tudo
O noivo estendeu a mão,
Ela cravou-lhe o punhal
Em cima do coração.

O punhal entrou um palmo
Ele caiu sobre o chão,
Ela perguntou ao pai
-- Está satisfeito barão?
Viu como uma mulher faz
Cumpri minha jura ou não?

O barão ficou possesso
Quis na mesma ocasião,
Vibrar-lhe uma punhalada
Deixa-la morta no chão,
Soluçava em desespero
Em pensar naquela ação.

Foi um irmão do tal primo
Vingar nela o seu irmão,
Ela disse este punhal
É tudo na minha mão,
Abaixo de Deus é ele
Quem me dar a proteção.

Aí cravou-lhe o punhal
Ele caiu sem alento,
Ela enxugando gritou:
-- Tudo aqui eu arrebento,
Até meu pai se opuser
Morre ou sofre ferimento.
               11
Aí o bispo pegou-a
E deu-lhe voz de prisão,
-- Estou presa disse ela
Mas não me entrego ao barão,
Meu pai me fez assassina
Fez a minha perdição.

Apontou para o cadáver
E lhe disse: -- Desgraçado,
Morreste por ser covarde
Sendo por mim avisado,
Teu irmão também morreu
E tu foste o culpado.

O bispo disse a Marina:
-- Eu garanto a sua vida,
Então respondeu Maria:
-- Ao senhor estou rendida,
A morte não faz terror
Quando a alma está ferida.

-- Jurei perante o meu pai
Que com outro não casava,
Porque o amor de Alonso
Fielmente eu conservava,
E disse que este punhal
Era quem me advogava.

-- Avisei a este covarde
Já no último momento,
Preveni que o matava
No ato do casamento,
Aquilo que digo faço
Já cumpri meu juramento.
               12
Meu pai fez minha desgraça
Devido sua ambição,
Prefiro morrer de fome
Encerrada na prisão,
Porém o amor de Alonso
Não sai do meu coração.

Se na prisão me acabar
For presente ao criador,
Se lá eu puder falar
Direi a Ele: -- Senhor,
Toda culpa que eu tive
Foi entregue ao meu amor.

Disse o barão que a levasse
Para a prisão amarrada,
Porque era assassina
Sanguinária desgraçada,
Duas vidas inocentes
Deu fim agora a malvada.

As criadas acompanharam
Até entrar na prisão,
Ela primeiro que tudo
Escreveu para o Japão,
Contando tudo a Alonso
O que fez na aflição.

Alonso já tinha  ganho
Dois mil contos no Japão,
Quando recebeu a carta
Quase morre de paixão,
Disse consigo: -- é agora
Que me vingo do barão.
             13
Na carta ia o seguinte:
-- Alonso me desgracei,
Meu pai quis casar-me a força
Que eu não casava jurei,
Me levaram aos pés do padre
Lá mesmo o noivo  matei.

Matei mais um irmão dele
Que se interveu na questão,
Porque também reclamava
Que podia ainda o barão,
Visto ter morto o meu noivo
Querer dar-me ao seu irmão.

Tomou Alonso um vapor
E seguiu no mesmo dia,
Com nove dias de viagem
Chegou aonde queria,
Mudou de traje e de nome
Que ninguém o conhecia.

Encontrou na rua um homem
Que lhe pedia dinheiro,
Porque estava achando
Ser Alonso um estrangeiro,
Alonso viu com umas chaves
Conheceu ser carcereiro.

Alonso lhe perguntou:
-- O amigo é carcereiro,
-- Sou seu moço disse o velho
Um mendigo aventureiro,
A seis meses que trabalho
E não recebo dinheiro.
                14
Alonso com muito jeito
Fez-lhe uma indagação,
Perguntou: -- O senhor tem
As chaves duma prisão,
Nesta prisão onde está
A menina do barão?

-- É esta mostrou a chave
Com que abro - lhe a porta,
Há seis dias coitada está
Com 1 ferro pesados as costas,
Tanto creio que amanhã
Ela amanheça morta.

-- Quer vinte contos de réis
Pra tirá-lo da prisão,
Disse Alonso mostrando
O cheque que tinha na mão,
Disse o velho: -- Deus me livre?
O que me fará o barão!

-- Amigo eu sou o Alonso
Por quem Marina está presa,
Moro no Japão sou banqueiro
Tenho dinheiro e grandeza,
Venho de lá ocultamente
Só tratar desta defesa.

-- Dou-lhe o dinheiro logo
E fuja para o Japão,
Chegue lá pode contar
Com a minha proteção,
Pois eu para os japoneses
Tenho mais força que o barão.
                   15
O velho coça a cabeça
Diz ali eu vou pensar,
Olhava para o dinheiro
Não podia dispensar,
-- Pois vinte contos de réis
Eu não deixo de ganhar.

Há seis dias que Marina
Não via agua nem pão,
Nem luz se quer lhe traziam
Que horrível situação,
Com doze quilos de ferros
Quase morta sobre o chão.

Quando chegavam lhe as dores
Ela assim mesmo gemia,
Interrogava a si própria
Será noite ou será dia?
Nem se quer entra uma réstia
Nessa maldita enxovia.

Meu Deus que cova escura
Oh! tormento sem modelo,
Oh luz do sol cintilante
Eu nunca mais hei de vê-lo,
Sou companheira das trevas
Nesta habitação do gelo.

Porém pouco custará
A por termo em minha vida,
Que tem, que sofá estas dores
Morrer aqui oprimida,
Nesse terror assim mesmo
Não me faz arrependida.
              16
Veio o velho com Alonso
E entraram na prisão,
Alonso quase desmaia
Vendo Marina no chão,
Pôs-lhe a mão achou fria
Que fazia compaixão.

Alonso levava leite
Rapidamente aquentou,
Pondo Marina no colo
Ela com pouco acordou,
Tomou um pouco de leite
Com pouco mais melhorou.

Quando Marina acordou
Que viu Alonso ao seu lado,
Exclamou: -- Meu Deus é sonho
Ou eu terei me enganado,
Fitou-o e chamou por ele
Disse: -- Oh! anjo abençoado!

Logo que Alonso se viu
Com Marina em seu poder,
Disse consigo: -- Eu agora
Pouco me importa morrer,
Fiz o que ela me fez
Pode o barão se morder.

Depois que eles estavam fora
Um  oficial  os  viu,
E para Alonso e Marina
Como uma fera partiu,
Alonso com um punhal
Cravou-lhe ele caiu.
             17
Chegaram mais cinco praça
A Alonso  acometeram,
Alonso atirou em dois
Ali mesmo eles morreram,
Marina ainda matou
Ficaram dois e correram.

Correu ao porto e disse
Ao capitão do navio,
Que queria partir logo
Que o tempo estava de estio,
Ele disse: -- Agora não
O barco estava vazio.

No outro dia às dez horas
Estava o barco preparado,
O barão desconfiou
Que o barco estava fretado,
Pôs em estado de sítio
O navio foi embargado.

Correu-se canto por canto
A fim de ver se achava,
Um velho amigo de Alonso
Numa cova os conservava,
Então o velho escondido
Todo negócio espreitava.

Alonso mandou pelo velho
Uma carta ao capitão,
Que fosse falar com ele
Pois havia precisão,
Dizendo: -- Eu tenho dinheiro
Que compre a navegação.
                18
Pronto a capitão chegou
Então Alonso lhe disse,
Que queria retirar-se
Oculto que ninguém visse,
E a quantia de dinheiro
A que o capitão pedisse.

Com pouco chegou um soldado
Procurando o capitão,
Chegando a ele entregou-lhe
Uma carta do barão,
Dizendo: -- Custa-lhe a vida
Se partir para o Japão.

O capitão que era forte
Disse: -- Alonso se apronte,
Embarque e conduza a moça
Pro Japão comigo conte
Você só sai do meu barco
Se fizerem de mim ponte.

A uma da madrugada
O navio abriu uma vela,
Seguiu de bandeira içada
Então a noite era bela,
Pois no mar isto é vantagem
Numa noite como aquela.

Assim que o vigia viu
Que Alonso tinha fugido,
Correu deu parte ao barão
Que o barco tinha saído,
O barão deu um ataque
Ficou sobre o chão caído.
               19
Mandou chamar uma esquadra
E mandou que o perseguisse,
Onde encontrasse o navio
Prendesse se resistisse,
Matasse Alonso lá mesmo
Queimasse a filha se visse.

Já tinha andado dois dias
Era uma manhã bem cedo,
Deu fé de um tripulante
Que perseguia um torpedo,
O capitão preparou-se
E disse: -- Aqui não há medo.

Com poucas horas depois
O navio o alcançou,
Deram-lhe voz de prisão
O capitão se alterou,
Alonso saia pra fora
A batalha se travou.

Cento e quarenta soldados
Contra o barco se botaram,
O capitão morreu logo
Com os tiros que trocaram,
O navio que Alonso ia
As balas o estragaram.

Marina disse a Alonso:
Se perdermos essa vitória,
Tocamos fogo na pólvora
Que isso pra nós é glória,
De nós não há um que fique
Para contar a história.
               20
O chefe da expedição
Disse a Alonso: -- Se renda,
Marina com ânimo disse:
-- A nós não vejo quem prenda
Estamos sós vamos ver
Quem é que ganha a contenda.

Disse Alonso: -- É a peleja
E desceu logo ao porão,
Trouxe um caixote já pronto,
E com toda disposição,
Deitando fogo na pólvora
Foi medonha a explosão.

Porém Marina e Alonso
Da explosão escaparam,
Foi uma felicidade
Uma  tábua encontraram,
Passando por perto deles
Ambos nela se pegaram.

Dos inimigos de Alonso
Apenas um se salvou,
Por uma felicidade
Um salva vida inda achou,
Foi esse que ao barão
Todo ocorrido narrou.

O barão como uma fera
Depois de estar informado,
Aí foi ver o punhal
Que ainda estava guardado,
Remeteu ao pai dos mortos
Que era o conde seu cunhado.
                  21
E mandou pedir ao conde
Que guardasse por lembrança,
O punhal com todo sangue
Como papel de herança,
Dizendo: -- Eu só apareço
Depois da minha vingança.

Mandava dizer na carta
Para o conde Montalvão,
Vou perseguir o bandido
E mato no caldeirão,
Marina abro-a pelas costas
E arranco o coração.

O conde e a condessa
Quando a carta receberam,
Com esta triste notícia
Que seus dois filhos morreram,
Passaram oito ou dez dias
Que apenas água  beberam.

O conde e sua mulher
Todo dia consultavam,
Que de todos os seus filhos
Apenas um lhe restava,
E esse para o futuro
Era quem tudo vingança.

Que deixemos aqui os planos
Que os condes adotaram,
Veja Marina e Alonso,
Como foi que se salvaram,
Quase nas ânsias da morte
Como um  protetor acharam.
                   22
O navio afundou logo
Devidos grandes estragos,
Marina ali disse: -- Alonso
Morremos estamos pagos,
Nossas almas vão unidas
Deus verá nossos afagos.

Disse Alonso: -- Eu contigo
Da morte não tenho lembrança,
Faço de contas que vou
Para o céu numa mudança,
Teu peito serve de sombra
Onde minha alma descansa.

Disse Marina sorrindo:
-- Isso aqui é um altar,
Os peixes são sacerdotes
Um há de vir nos casar,
Eu fui pedida na terra
O casamento é no mar.

Ambos ficaram vagando
Esperando pela morte,
Alonso disse: -- Marina
Vamos ver que dar a sorte,
Haja o que Deus for servido
Ainda que a vida nos corte.

Disse Marina a Alonso:
-- Eu não tenho a esperança,
O mundo, o outro e a família
Risquei tudo da lembrança,
Tudo com a morte se acaba
Tudo com a vida se alcança.
                   23
Olhou para Alonso e disse:
-- Vamos fazer oração,
Nos confessado a Deus
E lhe pedindo perdão,
Por tumba temos o mar
Por coveiro o tubarão.

Olhou para o céu e disse:
-- Jesus Cristo Redentor,
Deus home verdadeiro
De todo mundo senhor,
Olhai para estes infelizes
Pobres escravos do amor.

Para o alto do Calvário
Onde a grande cruz se ergueu,
Por Vosso sangue inocente
Que em gotas na cruz desceu,
Pelas chagas pelos cravos
Perdão para o crime meu.

Pelo cálice de amargura
Vos peço meu Deus me acudas,
Eu só mereço que faças
Para mim as ouças mudas,
Vos peço por vossas dores
Pela a traição de Judas.

Meu Deus vós bem conheceis
Meu coração traidor,
Não fiz traição ao meu pai
Nem a ele tenho rancor,
Só vós poderá saber
A ciência do amor.
              24

-- Vos peço oh Deus se quiser
Com pena me castigar,
Mandai que as águas se abram
Pra nelas me afogar,
Salvando Alonso é bastante
Sou satisfeita em pagar.

Aí Marina ouviu
Uma voz desconhecida,
Dizer-lhe: -- Tua oração
Por Deus do céu foi ouvida,
Com pouco virá uma onda
Que salvará tua vida.

Então perguntou Marina:
-- Quem és tu que estás falando?
-- É tua mãe respondeu-lhe
Sempre estou por ti velando,
Morri fazem quinze anos
Mas vivo te acompanhando.

Aí chegou uma onda
Com toda força arrojou-os,
No espaço de três horas
Sobre uma praia botou-os,
Alonso pegou Marina
Aí a onda deixou-os.

Já o sol ia se pondo
Seus raios de ouro morrendo,
O manto negro da noite
Sobre o mundo se estendendo,
E eles esmorecidos
Gelados no chão tremendo.
                 25
Marina exclamou: -- Que frio!
Que fome me devorando!
Que ilusões sinto nervosa!
Que dores me ameaçando!
Será o anjo da morte
Que está nos visitando?

Nisto ouviram umas risadas
Era um homem pescador,
Viu os dois caídos ali
Gritou com todo terror:
-- É Alma do outro mundo
Ou algum salteador?

-- Não sou alma nem ladrão
Nós somos dois naufragados,
Escapamos de morrer
Estamos aqui derrotados,
Lutamos o dia todo
Saímos estamos gelados.

-- Estão nus? Pergunta o homem
-- Nós estamos sim senhor,
-- Coitados que lástima é essa
Exclamou o pescador,
Náufragos em terra alheia
Meu Deus do céu que horror!

-- Meu amigo eu sou um homem
Pobre e desprevenido,
Sinto nada possuir
Disse-lhe o desconhecido,
Porém vou em minha casa
Ver se arrumo um vestido.
               26
O homem e sua mulher
Conseguiram um vestido,
Alonso vestiu Marina
Que já tinha esmorecido,
E se embrulhou numa capa
Que o homem tinha trazido.

Disse o pescador pra eles:
-- Eu não tenho o que lhes faça,
Minha casa é a mais pobre
Que tem aqui nessa praça,
Vamos pra lá assim mesmo
Que a noite depressa passa.

Alonso pôs se indagando
Depois duma refeição,
Se ali morava um homem
Que tivesse transação,
Ou tomasse algum dinheiro
Aos banqueiros do Japão.

--- Tem o senhor Manassés
-- E Manassés mora aqui?
-- Mora e é comerciante
A casa dele é ali,
-- É meu freguês disse Alonso
Só tem é que nunca vi.

Então Alonso escreveu
Contando todo ocorrido,
Contando do seu embarque
Como tinha se perdido,
E de que forma se achava
E como tinha saído.
                27
Manassés na mesma hora
Veio onde Alonso estava,
Perguntou-lhe quanto queria
E de quanto precisava,
Disse quanto possuía
Ao dispor dele se achava.

-- Queria uma embarcação
Para dar ao pescador,
Ele foi bom para mim
E foi o meu salvador,
É necessário eu lhe dar
Seja que quantia for.

O navio que Alonso vinha
O mar tinha arrojado,
Estava perto da praia
Que o mar tinha botado,
Foram acharam o dinheiro
Que Alonso tinha guardado.

Alonso comprou um barco
Que estava no estaleiro,
Procurou um capitão
Um homem forte e guerreiro,
Que fosse conhecedor
De qualquer mar estrangeiro.

Depois de cinco ou seis dias
Tomaram o barco e seguiram,
Levando quatro criados
Que para o Japão partiram,
Mas logo ao sair do porto
Em grande luta se viram.
               28
Um grande peixe feroz
Contra o barco se botou,
Quase que vira o navio
Ainda   o  arruinou,
Porém vinha um calafate
Ali mesmo consertou.

Ia tudo tão tranquilo
Nada havia de embaraço,
Alonso e Marina andavam
Sempre na proa de braços,
O barco era como uma ave
Que ia cortando espaço.

Mostra Alonso a Marina
-- Vês este sol que brilha!
Naqueles flocos de neve
Fingindo uma maravilha,
Como é bela uma hora desta
Juntar se as nuvens em pilha.

Neste momento Marina
Olhando pra amplidão,
Observou que atrás deles
Vinha uma embarcação,
Com uma bandeira encarnada
Conheceu ser o barão.

-- Alonso! Exclamou ela
Nossa desgraça chegou,
Olha aquela embarcação,
Foi Deus que nos castigou,
Meu Deus oh! que tormento
Mas Alonso a acalmou.
                29
Disse o capitão do barco:
-- Somos de novo perseguido.
Se o barco nos alcançar
Um de nós fica perdido,
Ele hoje ou mata ou morre
Um de nós fica perdido.

Marina disse: -- Alonso
Eu sou filha ele é meu pai,
Com tudo ainda o amo
Sinto um amor que me trai,
Hoje somos inimigos
Um de encontro o outro vai.

Não passaram duas horas
Se  encontraram os guerreiros,
Os navios eram bons
Ambos fortes e ligeiros,
O barão se preparou
E preveniu os artilheiros.

Então gritou para Alonso:
-- Pare esse barco bandido,
Tu hoje te arrependerás
De seres tão atrevido,
Alonso disse ao barão
Haja o que Deus for servido.

Aí gritou ao barão:
-- Atire nesse navio,
Pois a um bandido deste
Não se fala em desafio,
Se ele escapar vou dentro
Mato tudo a ferro frio.
             30
Dispararam duas peças
Que o navio estremeceu,
Alonso também de cá
Um tiro enorme lhe deu,
O navio que Alonso ia
Uma bala inda rompeu.

Alonso disse ao barão
-- É melhor se acomodar,
Volte daqui vá viver
Não queira me desgraçar,
Eu pago suas despesas
Pra o senhor se aquietar.

-- Miserável aventureiro
Não quero te dar ouvido,
Tu hoje hás de pagar
Tudo que tenho sofrido,
Num caldeirão deste barco
Tu hás de seres cozido.

E repetiu com um tiro
Mas Alonso se livrou,
Atingiu ao capitão
Um balaço aterrador,
Este morreu ali mesmo
Que nem gemeu com a dor.

Um tenente coronel
Que acompanhava o barão,
Saltou no navio de Alonso
Com uma espada na mão,
Marina deitou-lhe um tiro
Morreu e nem fez ação.
              31
Investiu mais um major
Um sargento e um soldado,
Marina emparelhou os três
Com um tiro tão acertado,
Que matou dois no momento
Outro ficou aleijado.

O barão e o alferes
Contra Alonso e dois criados,
Ambos varou com um tiro
Estavam muito estragados,
Pareciam seis leões
Lutando desesperados.

Marina disse meu pai:
-- Deixe de ser orgulhoso,
Atenda o poder de Deus
Que é o único poderoso,
Lhe peço em nome de Deus
Não seja tão rigoroso.

-- Suma-se infeliz maldita!
Não quero olhar-te um instante,
Se eu aqui não me afogar
A  mato a ti e teu amante,
Eu mato ainda que Deus
Contra mim se meta adiante.

Todos já tinham morrido
Restava ele somente,
Alonso viu que morria
E o barão muito imprudente,
Soltou uma dinamite
Foi-se o barco de repente.
                 32
Porém por felicidade
Sempre escapou o barão,
Agarrou-se num escaler
Que escapou da explosão,
Escapou quase sem roupa
Porém o punhal na mão.

O navio que Alonso ia
Da explosão escapou,
Na explosão se estragou
De gente escapou ele
O mais tudo se acabou.

Submergiu-se o navio
Eles salvaram-se em um bote,
Marina exclamou e disse:
-- Meu Deus naufrágio é meu dote,
Pedimos agora a Deus
Que numa praia nos bote.

O barão desesperado
Por não poder se encontrar,
Com Alonso e com Marina
Com intenção de lutar,
Levava o punhal nos dentes
Que chegava a se cortar.

Conseguiu a se encontrar
Com o bote que Alonso ia,
Falava mais com a cólera
Quase que ninguém ouvia,
Quando olhava para ele
Todo corpo lhe tremia.
              33
-- Eis aí disse o barão
Vamos ver o que dar a sorte,
Bandido hoje um de nós
Será herdeiro da morte,
As facas são testemunhas
Ganhará quem for mais forte.

E se travaram na luta
Ainda Alonso se feriu,
Alonso virou-lhe o bote
Ele na água se sumiu,
Estava morrendo afogado
Mas Marina o acudiu.

Ele salvando-se disse:
-- Ainda fizeste essa ação?
Não julgava ainda achar isto
Em teu cruel coração,
Alonso ainda falou
Ela não deu atenção.

Ele em soluço exclamava:
-- Oh! que coração cruel,
Boca que tanto beijei
Que parecia ter mel,
Não sabia que no futuro
Fosse uma taça de fel.

Em noites ela pequena
Só se acalmava comigo,
Se ela dormindo chorava
Eu estava sempre consigo,
Como se cria nos braços
O mais tirano inimigo.
              34
Saiu pelo mar vagando
Uma embarcação achou,
Vendo que era um naufrago
Parou o barco e salvou,
Ele contando quem era
A embarcação o levou.

E Alonso com Marina
Saíram também vagando,
Viram um barco japonês
Adiante deles passando
Alonso pediu socorro
Foi logo o barco parando.

Num dia e meio de viagem
Chegaram eles ao Japão,
Levaram os papéis já prontos
E casaram sem benção,
Descansou também Alonso
Das intrigas do barão.

O barão chegou em casa
Encontrou tudo estragado,
O palácio onde morava
Já se tinha incendiado,
Algum prédio que ainda tinha
Estava hipotecado.

Dizia ele assim mesmo:
-- Vou morrer no estrangeiro,
Onde ninguém me conheça
Que já fui eu verdadeiro,
Ninguém zombará de mim
Quando eu não tiver dinheiro.
                   35
Ele não sabia pra onde
Alonso tinha seguido,
 Embarcou para o Japão
Onde era desconhecido,
Um cheque que ele levava
Chegou estava perdido.

Carregou lixo na rua
A fim de se alimentar,
Caiu seis meses doente,
Depois de se levantar,
Para não morrer de fome
Foi preciso mendigar.

Foi procurar um emprego
De forma alguma encontrou,
Apenas numa cocheira
Alguns  meses se empregou,
O trabalho era pesado
Ele não aguentou.

O leitor calcula agora
Que horrível situação,
Hoje ser um jornaleiro
Quem ontem foi um barão,
Ontem com tanta fortuna
Hoje mendigando o pão.

Mas tudo isso é verdade
Dizia ele consigo:
-- Morrerei entre estranhos
Sem se quer ver um amigo,
Ninguém me perguntará:
Cadê teu orgulho antigo?
              36
-- Aqui ninguém me conhece
Não saberão quem fui eu,
Em minha terra dirão
Que o barão já morreu,
Não há quem tenha o prazer
De ver sofrimento meu.

Alguém que passar por mim
Dirá: -- É um desgraçado,
Não sabe quem fui outrora
Desconhece meu passado,
Também pela sepultura
Muito breve sou chamado.

Muitas vezes o barão
Recordando seu passado,
Dizia consigo mesmo:
-- Eu sou muito desgraçado,
Eis aí o meu orgulho
Em que é que foi tornado.

-- Aquele pobre rapaz
Que anda no fim do mundo,
Feito um pobre foragido
Talvez até um vagabundo,
Eu merecia por isto
Um sofrimento profundo.

-- Minha filha sendo única
Que minha mulher deixou,
A quem sua mãe morrendo
Tanto me recomendou,
Eu obriga-la a chegar
No extremo que chegou.
              37
Um dia ele não ganhou
Com que comprar o alimento,
E na noite não achou
Quem lhe desse um aposento,
Essa noite para ele
Foi um cárcere de tormento.

Oprimido pela fome
Pois nada comeu no dia,
A roupa toda rompida
Que o corpo aparecia,
Deitado numa calçada
Molhada, imunda e fria.

Um dia disse Marina:
-- Meu pai há de ter morrido,
Aquele seu grande egoísmo
Há de tê-lo consumido,
Pois o comum do orgulho
É sempre ser abatido.

Disse Alonso: -- Tenho pena
Da loucura do barão,
Mas ele é muito orgulhoso
E ninguém presta atenção,
Com tudo isso, assim mesmo
Não lhe negava o perdão.

Disse Marina: -- Assim mesmo
Com toda essa crueldade,
Não posso deixar de ter-lhe
Uma forçosa amizade,
Ele tem ódio de mim
Por ele sinto saudade.
            38
-- Se ainda chegar o dia
De vê-lo hei de curvar-me,
Embora o orgulho dele
Prive a ele de abraçar-me,
Porém se ver-me aos seus pés
Muito humilde, há de tomar-me.

Bem na calçada de Alonso
Foi um dia ele cair,
Alonso conheceu  ele
E para não o afligir,
Sem dizer nada mandou- o
Um criado o conduzir.

Deu-lhe um quarto e uma cama
Um médico veio o visitar,
Ele fazia seu juízo
Mas não podia acertar,
Porque meio aquele homem
Assim queria o tratar.

Marina ele e Alonso
Uma noite conversando,
Disse ele: -- Eu sou um monstro
É justo eu estar penando,
Assassinei minha filha
Deus está me castigando.

-- Fui malvado como Herodes
Soberbo como Lusbel,
Tinha uma única filha                
Uma alma nobre e fiel,
Contra a razão obriguei-a
A beber taça de fel.
            
-- Se ainda visse o meu genro
Para lhe pedir perdão,
E pedir que me matasse
Eu lhe perdoava então,
Minha vida hoje é um fardo
Dela não tenho precisão.
                39
-- Eu sou um ente incapaz
De um cristão me socorrer,
Uma lágrima em Marina
Ela não pode conter,
Alonso ouviu-a chorar
Foi obrigado a romper.

-- Seu genro barão sou eu
Por mim está perdoado,
Já me esqueci disso tudo
Pode ficar descansado,
Não é mais que isso o mundo
O barão estava enganado.

-- Bote a bênção em sua filha
Fiquemos em união,
Deus destina a sorte ao homem
Para ver seu coração,
Faz o grande se humilhar
Ergue o morto e dar-lhe ação.

O barão ficou com ele
Sendo de Alonso estimado,
Porém um sobrinho dele
Que ainda tinha ficado,
Por quem a cabo de anos
Foi Alonso assassinado.

Levamos isto a uma análise
Então ver-se aonde vai,
A soberba é abatida
No abismo tudo cai,
Deus é grande e tem poder
Reduz ao pó qualquer ser
O poder dele é de pai. – FIM
               40


Grinaura e Sebastião
JOSÉ PACHECO

VIRTUDE, honra e critério
Coragem, luta e horror,
Romance que nos dedica
Um gigantesco valor,
Vingança dum braço forte
No triunfo do amor.

Já ouvi alguém dizer
Morrer honrado é loucura,
Mas também a covardia
Leva o homem à desventura,
Enquanto a disposição
Tira-o de grande amargura.

O homem deve mostrar
Heroísmo e energia,
Porque dos entes da terra
É o de maior valia,
Semelhança de Jesus
Filho da Virgem Maria.

Descrevo um sinistro drama
O leitor lendo conhece,
Onde a falsidade morre
A inocência floresce,
E onde cai a desonra
É que a castidade cresce.
              01
Em São Paulo residia
Um distinto cidadão,
Com o seu filho solteiro
Por nome Sebastião,
Os quais gozavam na praça
Muita consideração.

Sebastião era um jovem
De forte musculatura,
Contemplado por diversas
Moças de nobre candura,
Vivendo em tranquilidade
Pensando só na ventura.

Mas a sorte é abstrata
Qual uma roda, figura,
Rodando às direitas traz
Bonança, paz e doçura,
Ao contrário só nos deixa
Tormento, aflição tortura.

Numa vila de São Paulo
O dito rapaz morava,
Com negócios ambulantes
De contínuo viajava,
Mas de correr terra estranha
Era o que mais desejava.
               02
Um dia Sebastião
Disse: -- Meus bondosos pais,
Peçam a Deus que me cubram
Com as bênção divinais,
Porque pretendo correr
Muitas partes terreais.

Então disseram seus pais
Com maneira de atenção:
-- Sim meu filho, é de teu gosto
Terás toda permissão;
Numa manhã de setembro
Viajou Sebastião.

Os raios do sol douravam
Os planaltos campinais,
Com uma cor purpurina
Revestiam os vegetais,
Trinava o galo na serra
Nos leques dos palmeirais.

A neve pelos outeiros
Desmanchava-se em pedaços,
Passava uma nuvem branca
Pelo além do espaço,
Deixando o azul celeste
Sem um sinal de retraço.
                 03
Então na sua viagem
Numa tarde um certo dia,
Aproximava-se a noite
O manto negro descia,
Ele perdeu-se e entrou
Numa grande travessia.

Zunia um vento suave
Trazendo aromas campais,
A lua deitava raios
Por cima dos matagais,
As estrelas reluziam
Seus focos celestiais.

Sebastião destemido
Alta noite caminhava,
O pirilampo na frente
De quando em quando brilhava,
Também o tigre nas brenhas
Horrivelmente esturrava.

Mais ou menos já no meio
Dessa travessa ditada,
Ao lado esquerdo ali tinha
Uma cabana isolada,
Que há dez anos já era
Pelo dono abandonada.
               04
Abrigou-se no casebre
Enquanto a noite passava,
Agora vamos tratar
Dum engenheiro que amava,
A filha dum fazendeiro
Que com seis léguas morava.

Dezesseis anos contava
Aquela gentil donzela,
Grinaura o seu lindo nome
Seu pai o doutor Portela,
Habitantes da fazenda
Denominada Marcela.

O engenheiro a Grinaura
Um grande amor consagrava,
Mas ela pelo o contrário
Sempre, sempre detestava,
Ele foi procurar meio
Para ver se dominava.

Com ele morava um negro
De muita disposição,
Um desses que nas astúcias
Passava a perna em Cancão,
Disse: -- Eu vou roubar Grinaura
Pode descansar patrão.
              05
Chegou disfarçadamente
Na casa do fazendeiro,
Pediu emprego dizendo
Que era bom cozinheiro,
Mas como não tinha vaga
Foi trabalhar de copeiro.

Com planos falsificados
Comprou certa intimidade,
Acariciando a todos
Com respeitabilidade,
Tanto que pode arranjar
De todos muita amizade.

Trabalhador e ativo
Mostrando perseverança,
Dando a conhecer que era
Tão simples quanto criança,
Até que colheu bastante
Do patrão a confiança.

E assim trinta e dois dias
No trabalho completou,
Vamos saber da cilada
Que o tal negro inventou,
Para carregar Grinaura
Como de fato roubou.
              06
Chegou ao patrão e disse:
-- Meu fazendeiro estimado,
Há quatro noites que vivo
Bastantemente assombrado,
Com uma alma que vem
Dar-me um dinheiro enterrado.

Perguntou-lhe o senhor sabe
Aonde tem um mourão,
No meio da travessia?
-- Conheço disse, o patrão
O negro disse: -- Pois é lá
Que tem um grande caixão.

-- Eu não posso arrancar
Não é falta de vontade,
Tenho coragem mais vejo
Grande contrariedade,
-- Qual é, disse o fazendeiro
A impossibilidade?

-- Lhe digo senhor patrão
A visão diz claramente,
Que o caixão tem mil contos
De ouro, prata e corrente,
Pra mim e dona Grinaura
A vossa filha inocente.
             07
-- Então diz que é preciso
Eu ir somente com ela,
Levando um rosário bento
Uma cruz e uma vela,
A dúvida está no senhor
Me confiar a donzela.

Respondeu o fazendeiro
Sem apresentar desvio:
-- Até hoje tens provado
Que tens honradez e brio,
Pode ir com ela à noite
Não tenho cisma e confio.

Assim que distanciaram-se
Da casa do fazendeiro,
O negro disse a Grinaura:
-- Sabe qual é o dinheiro?
É você hoje que vai
Pra casa do engenheiro.

Disse ela: -- Deus me livre
Então traíste meu pai,
Disse ele: -- Eu que me importa
Eu sei é que você vai,
Eu prometi de a levar
Minha promessa não cai.
                 08
E obrigou a seguir
O tal negro traidor,
Ela chorando dizia:
-- Meu Jesus meu salvador,
Mandai-me qualquer socorro
Patrocinai-me, Senhor.

Mais ou menos meia-noite
Grande silencio fazia,
A não ser Deus, outro ali
A ela não protegia,
Mas a inocência sempre
Triunfa com alegria.

Agora o leitor se lembra
Da quadra que referia,
Ao moço Sebastião
Que pediu aos pais um dia,
Licença pra viajar
E dormiu na travessia.

Pois foi nessa mesma noite
Que os dois iam passando,
O negro atrás de Grinaura
Ela na frente chorando,
Sebastião enfrentou
Foi assim perguntando:
              09
-- Porque choras senhorita?
Diz ela: -- Meu bom senhor,
Queira por Deus defender-me
Das mãos deste traidor,
O negro lhe disse: -- Siga
Aqui não há protetor!

Disse-lhe o rapaz:-- Tem eu
Posso ser protetor dela,
Pede-me que a defenda
Porque não protejo ela?
Quem é seu pai senhorita?
Respondeu: -- Doutor Portela.

O negro disse: -- Senhor
De tomar ela não pense,
Eu esquentando as orelhas
Nem o diabo aqui me vence,
E em vez da moça hoje
É bala quem lhe pertence.

Sebastião disse: -- Negro
Não venha me soltar graça,
Eu faço carniça em trinta
Negro assim da tua raça,
E fique ciente que
A moça daqui não passa.
               10
Porque no tiro sou destro
E quando meu dedo rapa,
Quem estiver pela frente
Desaparece do mapa,
Onde a bala bate faz
Rombo que chapéu não tapa.

O negro disse: -- Uma vez
Disparei o meu comblé,
Num branco desaforado
Assim como você é,
A bala entrou na cabeça
Saiu na ponta do pé.

Disse o rapaz vamos ver
Pra quem é que a sorte dá,
Houve um enxame de balas
Igualmente a mangangá
Grinaura se resguardou
Num tronco dum jatobá.

E depois no ferro branco
Qual dois galos no terreiro,
Brigava o moço dizendo:
-- Moleque eu sou verdadeiro,
O negro também gritava
-- Dar certo no meu tempero!
                     11
Corriam o ferro um no outro
Mas não encontravam nada,
Porque se um tinha bom
No tirar da punhalada,
O outro tinha melhor
No rebater da topada.

Grinaura disse consigo
Vendo a luta desmedida:
-- Aquele rapaz morrendo
Eu fico sempre perdida,
Eu vou ver se Deus me ajuda
Que possa salvar-lhe a vida.

Por milagre ali achou
Um cacete de cocão,
Na biqueira do casebre
Bateu com disposição,
No negro e ele estendeu-se
Nos pés de Sebastião.

Dez minutos mais ou menos
Ali  o  negro  ficou,
Enquanto estava arreado
O rapaz o amarrou,
Pra fazenda do Portela
No mesmo instante o levou.
                12
Doutor Portela ficou
Bastante sobressaltado,
Vendo aquele moço estranho
Com o tal negro amarrado,
O rapaz disse quem era
E contou todo passado.

Respondeu doutor Portela:
-- Sou franco e mal pensador,
Em confiar minha filha
A este negro traidor,
Um ladrão da boa fé
Infame profanador.

Na porteira do curral
O fazendeiro e o moço,
Ali amarraram o negro
No ronco dum mourão grosso,
Com cadeados e correntes
Laçado pelo pescoço.

Deixemos por um instante
O negro aprisionado,
Tratemos do engenheiro
Quando soube do passado,
Quem lhe contou ninguém sabe
Do negro o mal resultado.
              13
Mas como a história ruim
Difere muito da boa,
A que presta não se espalha
Anda pouco e nada zoa,
A ruim se dana logo
Em vez de caminhar, voa.

Disse o engenheiro assim
No momento de partir:
-- Mato tudo e trago a moça
Solto o negro e tem que vir,
Partiu com quarenta cabras
Desses duros de tinir.

Um compadre de Portela
E fazendeiro também,
Escreveu dizendo assim:
-- Meu bom compadre aí vem,
Quarenta cabras no rifle
Prepare os homens que tem.

Portela leu o aviso
Então ficou preparado,
Mandou botar um piquete
Na entrada do cercado,
Escolheu cinquenta cabras
Desses de doido a danado.
                 14
Às nove horas do dia
Bateu a tal cabroeira,
Portela com o seu povo
Fez a descarga certeira,
Derrubou vinte e seis cabras
Resguardado na trincheira.

Alguns ainda atiraram
Porém nenhum acertou,
O engenheiro correu
Doutor Portela o pegou,
E com a raiva que vinha
Meteu-lhe o ferro e sangrou.

O resto da cabroeira
Conhecendo a perdição,
Disseram: -- Benditas pernas
Tirai-nos dessa aflição,
Minha santa capoeira
Dai-nos vossa proteção!

No pessoal de Portela
Não se deu um ferimento,
Enquanto a tropa contrária
Ao depois do balamento,
Os que não morreram foram
Tratar de medicamento.
               15
Ficou o negro amarrado
Exposto a chuva e o sol,
Sem pão, sem água e sem cama
E muito menos o lençol,
Morreu ali envergado
Que parecia um anzol.

Doutor Portela escreveu
Ao Governo do Estado,
Provando sua razão
Com quem viu todo passado,
Como tinha seus direitos
De tudo foi perdoado.

Grinaura e Sebastião
Depois de toda contenda,
Casaram na santa paz
E ficaram na fazenda,
Se ainda forem vivos
De outra Deus os defenda.

Para mim este romance
Agrada com seu mister,
Contemplo o homem que luta
Honrando qualquer mulher,
Eu sou dessa opinião
Como o fez Sebastião,
O faço se a quadra der. – FIM
                16



História do Boi Mandingueiro

E o Cavalo Misterioso
Luiz da Costa Pinheiro

No Rio Grande do Norte
Havia um fazendeiro,
Era muito respeitado
Pela a fama do dinheiro,
Criava numa fazenda
Para qualquer encomenda,
Um grande Boi Mandingueiro.

Esse boi quando corria
Segundo diz o boato,
Tinha equilíbrio no corpo
Com ligeireza de gato,
Por meio de forte mandinga
Corria mais na caatinga,
Do que veado no mato.

Na carreira ele arrancava
Jucá velho de miolo,
Sabiá e mororó
Levava tudo no rolo,
Quebrava paus com as pontas
Espedaçando as vergônteas,
Caindo longe o rebolo.
            02
Pulava montes de pedras
Com dez palmos de altura,
Saltava riachos fundos
Com trinta ou mais de fundura,
Com asas de bacurau
Passava em galhos de pau,
Com a carreira segura.

Porém preciso dizer
Como foi seu nascimento,
Para o leitor amigo
Ter melhor conhecimento,
Sem afastar-me da verdade
Descrevo a fatalidade
Sem fantasia ou aumento.

Era o Capitão Monteiro
O dono do boi falado,
No Rio Grande do Norte
Era o mais respeitado,
Tinha cinco mil cabeças
Além de outras remessas,
Entre animais e gado.

Esse tinha uma vaca
Chamada Endiabrada,
A qual fez muitos vaqueiros
Voltar de mala arrastada,
Seu nome imortalizou
Morreu e nunca encontrou
Quem pegasse na rabada.
                03
Estava quase caduca
E nunca tinha parido,
Tanto que o fazendeiro
Vivia dela esquecido,
Não fazendo conta dela
Talvez pensando que ela
Até tivesse morrido.

Um dia o fazendeiro
A dita vaca encontrou,
Com o bucho muito grande
Admirado ficou,
Vendo a vaca amojada
Com a pança tão inchada
Dela muito caçoou.

Aí mandou um vaqueiro
Pegar a Endiabrada,
Então mandou botar ela
No cercado da Rajada,
E não se descuidasse dela:
-- Tenha cuidado com ela,
Daqui para a madrugada.

Disse então o seu vaqueiro:
-- Pegarei aquele cão,
Que vaqueiro nunca teve
O gosto de por-lhe a mão,
Mas como esta danada
Está de pança inchada
Talvez não faça ação.
             04
Adiante ele encontrou ela
Numa sombra descansando,
Então botou-a na frente
E ela saiu andando,
Fingindo fazer afrontas
Cavando o chão com as pontas
Como novilho marrando.

Meditava o vaqueiro
Levando a Endiabrada,
Dizendo no pensamento:
-- O filho desta danada,
Se ela não abortar
Se acaso se criar,
É pra fazer palhaçada.

No outro dia seguinte
A vaca tinha parido,
Um bezerro muito gordo
Preto retinto e nutrido,
Porém a Endiabrada
No chão estava estirada
No parto tinha morrido.

Quando o vaqueiro chegou
Encontrou ele mamando,
E ela morta já dura
Ele ainda puxando,
Voltou então o vaqueiro
Como uma flecha ligeiro
A história foi contando.
              05
O fazendeiro lhe disse:
-- Leve a vaca Lubisome,
Amamente o bezerrinho
Não deixe morrer de fome,
Não vá descuidar-se dele
Tome cuidado com ele
Enquanto o bichinho come.

Afinal levou a vaca
O bezerrinho aceitou,
Mamava nela porém
Nunca a ela acompanhou,
Com um mês de amamentado
Por ele ser o culpado
A Lubisome enjeitou.

Ele berrava com fome
Sem ela deixar mamar,
Revoltou-se contra ela
Fez ela a força deixar,
Depois que ele mamou
Os peitos dela arrancou,
Para melhor se vingar.

A vaca ficou doente
Ali de úbere inchado,
O bezerro foi embora
Daquele mesmo cercado,
O vaqueiro foi na batida
Achou o lugar da saída
Por onde tinha passado.
                06
O vaqueiro então contou
A mesma verdade pura,
Que ele pulou a cerca
Que era alta e segura,
Somente pra botar bicho,
Feita mesmo a capricho
Com doze palmos de altura.

O vaqueiro foi atrás
Mas nem o rastro encontrou,
Parece que criou asas
E neste dia voou,
Disse o vaqueiro zangado:
-- Parece que o danado
O demônio carregou.

Um  certo dia o vaqueiro
Andando a se distrair,
Ouviu em uma floresta
Um grande touro a mugir,
No meio do esquisito
E ele achou tão bonito
Que foi de perto ouvir.

Adiante ele encontrou
Um touro preto e pontudo,
Com as pontas amarela
Pretinho como veludo,
De corpo agigantado
Nos quatro pés perfilados,
Olhando bem carrancudo.
             07
-- Credo! Disse o vaqueiro
Sentindo uma comoção,
Um touro desta espécie
Eu nunca vi no sertão,
Com chifres descomunais
Conheceu pelos sinais
Ser o mesmo barbatão.

Assombrou-se quando viu
Aquele touro pontudo,
Em cerca de vinte léguas
Ele conhecia tudo,
Era impossível que houvesse
Fazendeiro que tivesse
Um só garrote orelhudo.

Botou o cavalo nele
Para ver se o pegava,
Desembestou a correr
Parecendo que voava,
Porém o boi mandingueiro
Tinha o corpo tão ligeiro
Que só o chôto ocupava.

Pisava em cima de tudo
Nada lhe embaraçava,
Moitas grandes de mofumbos
No peito ele levava,
Pau darco e juazeiro
Jurema preta e pereiro
Com as pontas arrancava.
                 08
Dando cem, duzentas braças
De distância ao vaqueiro,
Revirando paus e pedras
Com o corpo tão ligeiro,
Parecendo Ferrabraz
Em vez dele satanás
Correndo no tabuleiro.

Volta o vaqueiro doente
E o cavalo cansado,
Foi dizer logo ao patrão
O que tinha se passado,
Disse o amo assim pra ele
Puxa pra vaca mãe dele
Que soube dar o recado.

-- Vá a Fazenda Angico
Chamar Francisco Feitosa,
Chame também Catarino
E José Torres da Rosa,
Diga a ele que me traga
Amanhã em hora vaga
A besta velha gulosa.

Prontos chegaram eles três
Cada qual mais afamado,
Para derrubarem o boi
Vinham de plano formado,
Disse ali o capitão:
-- Ainda o boi sendo o cão
Eu quero vê-lo pegado.
               09
Quando chegaram no mato
Encontraram o Mandingueiro,
Naquele mesmo lugar
Que encontrou o vaqueiro,
Com a frente para o norte
Deu um mugido tão forte
Que zoou no tabuleiro.

Correndo no mesmo chôto
Dos vaqueiros caçoando,
Duzentas, trezentas braças
Ia na frente deitando,
Rompendo forte madeira
Depois só viram a poeira,
Ele no meio pulando.

Disse Francisco Feitosa:
--É asneira pelejar,
Este boi é o demônio
Que consegue nos tentar,
Nada se pode fazer,
Voltemos vamos dizer
Que não podemos pegar.

Voltaram então os vaqueiros
E disseram ao patrão:
-- O boi não há quem o pegue
Parece uma maldição,
Não corre sai choteando
Dos vaqueiros caçoando
Faz a pintura do cão.
            10
Disse o vaqueiro Zé Torres:
-- Furei a besta Gulosa,
Esta saiu como um raio
Em noite tempestuosa,
Porém o boi velho é osso
Correndo no mato grosso,
Não é de graça e nem prosa.

-- Aquele nasceu dotado
Para no mato correr,
Com tanta velocidade
Que nem a sombra se ver,
Vaqueiro vai comer ruim
Cavalos bons terão fim,
Se forem com ele mexer.

Disse ali o fazendeiro:
-- Vá a Fazenda Ingá,
Chamar Chico Vitorino
Pedro José Carcará,
Não é coisa de segredo
Diga que amanhã bem cedo
Com urgência venham cá.

No outro dia chegaram
Na fazenda do patrão,
-- Prontos estamos, coronel
À sua disposição,
Mandou-os logo o fazendeiro
Pegar o Boi Mandingueiro,
Eles disseram: -- Pois não.
                11
Enfim dos outros vaqueiros
Eles fizeram caçoada,
Então murmuraram os outros:
-- Vão também na enxurrada,
O boi é onça no pasto
Vocês só pegam o rasto
Voltam de mala arrastada.

Profere Chico Feitosa:
-- Há muito que sou vaqueiro,
Tenho derrubado boi
Que dizem ser feiticeiro,
Como aquele maioral
Eu nunca vi animal,
Do mocotó tão ligeiro.

Disse Pedro Carcará:
-- Vocês não campeiam bem,
Eu agora vou mostrar
Se o danado não vem,
Pra isso não peço arrogo
Meu cavalo Ferro-e-Fogo
Nunca respeitou ninguém.

-- Meu cavalo Ferro-e-Fogo
Uma vez no tabuleiro,
Eu vinha até descuidado
Encontrou um capoeiro,
Naquele mesmo flagrante
Dei um grito de alevante
Já vi cavalo ligeiro.
              12
Com cem metros de carreira
Eu arrastei o veado,
Matei o bicho de queda
E fui comê-lo guisado,
Para casa morto foi
Garanto que esse boi,
Hoje mesmo vai pegado.

Quando chegaram no mato
O boi estava malhando,
Debaixo duma jurema
Foi logo se levantando,
Botaram o cavalo nele
Só viram o vulto dele
Quinhentos metros distando.

Carcará velho atrás dele
Desembestou a correr,
No cavalo Ferro-e-Fogo
Já vendo a hora morrer,
Sem receio da desgraça
Escureceu de fumaça
Mas sem o fogo acender.

De carreira enfiada
Horrivelmente corria,
No cavalo Ferro-e-Fogo
Que a terra estremecia,
Naquela bruta carreira
Do boi só viam a poeira,
Subindo na ventania.
          13
Correu mais de duas léguas
Rompendo forte madeira,
Vendo só na frente dele
Um redemoinho de poeira,
O boi danado correndo
Então ficou conhecendo,
Que não era brincadeira.

-- Oh que boi endiabrado
Sai apenas choteando,
Porém numa ligeireza
Que parece ir voando,
É o diabo que o segue
Este não há quem o pegue!
Volta Carcará chorando.

Volta Pedro Carcará
O boi no mato ficou,
Aí dos outros vaqueiros
Grande vaia ele levou,
Porque era farofeiro
Até mesmo o fazendeiro
Dele muito caçoou.

Disse Pedro Carcará
A coisa assim não vai boa,
Os senhores bem que sabem
Que não sou vaqueiro atoa,
Quem me conhece assegura
Que ele é boi em figura
Mas é o diabo em pessoa.
                14
Correu a fama no mundo
Desse boi endiabrado,
E veio então da Bahia
Um vaqueiro afamado,
Pegar o Boi Mandingueiro
Que era forte e ligeiro
Para ser patenteado.

O vaqueiro era mulato
Moço e bem carrancudo,
De cabelos cacheados
Bigode grande e felpudo,
Tendo na fala um defeito
Zarolho do olho direito
Era quase tartamudo.

Quando o fazendeiro viu
A figura do mulato,
Disse: -- O boi agora vem
Este cabra não é pato,
Este é cabra danado
E está acostumado
Derrubar gado no mato.

Outros diziam: -- Este cabra
Parece ser feiticeiro,
Pode ficar na certeza
Que este é verdadeiro,
Nos mostra a experiência
É só quem tem competência
De pegar o Mandingueiro.
                 15
Outros diziam ao contrário:
-- O boi não é brincadeira,
Ele vem somar vergonha
Correndo na capoeira,
Depois de correr no campo
Tem que voltar com sarampo,
E a sarna comedeira.

Outro dizia sorrindo:
-- Ele é pobre até de fala,
Fala tartamudeando
Parece que se entala,
Pois este ainda não foi
Pensará que pega o boi
Em vez dele, pega a mala.

O cavalo era cardão
Tamanho demasiado,
Grande de corpo franzino
Forte bem encascado,
Denominado “Relampo”
Era uma águia no campo
Na arte de pegar gado.

Perguntaram: -- De onde vens?
Disse ele: -- Da Bahia,
Eu vim aqui porque soube
Que a vossa senhoria,
Tem um boi agigantado,
Que dizem ser endiabrado
Que corre em demasia.
                16
Diz o capitão: -- Sim senhor
É um boi estuporado,
Não corre, sai choteando
Em um chôto tão danado,
Que o vaqueiro não pega
Quem corre atrás arrenega
Traz tudo atormentado.

-- Amanhã muito cedinho
O senhor pode mandar,
Uma pessoa comigo
Pra esse boi me mostrar?
Nesta vida não sou cego
Só creio que não o pego,
Quando me desenganar.

No outro dia cedinho
Saíram com o vaqueiro,
Adiante eles encontraram
O dito Boi Mandingueiro,
Disse o mulato em cochicho:
-- Parece que esse bicho,
Tem o mocotó ligeiro!

O referido vaqueiro
Chamava-se Zé Tomás,
Infeliz do barbatão
Que ele corresse atrás,
Porque o cavalo dele
Correndo montado nele,
Pegava até satanás.
              17
No boi estava escrito
-- Eu sou o boi Urutuba,
Para correr na floresta
Na caatinga eu sou cotuba,
Todos conhecem este fato
O seu cavalo é um pato
E você não me derruba.

Aí numa desfilada
Desembestou a correr,
Dentro da caatinga bruta
Fazendo a terra tremer,
Em cima da pedra dura
Com a carreira segura
Se ouvia o casco bater.

Pulando monte de pedra
Com descomunal altura,
Passava em ganchos de pau
Sem reparar a grossura,
Grande fumaça soltando
Quinhentos metros distando,
Dando ao vaqueiro  ventura.

Correu mais de duas léguas
O cavalo enfraqueceu,
Ficou todo afrontado
Dessa carreira que deu,
Quando apeou-se da sela
Estourou dentro a moela,
Caiu no chão e morreu.
                18
Zé Tomás deixou-o morto
Não quis trazer nem a sela,
Quase morto de cansado
Batendo muito a titela,
Para um vaqueiro afamado
Muito pegador de gado,
Cair em tal esparrela.

Na casa do fazendeiro
Ele a história contou,
Dormiu porém não comeu
No outro dia arribou,
Ficou com tanta vergonha
E esta foi tão medonha,
Que nunca mais campeou.

Disse então o fazendeiro:
-- O vaqueiro que pegar,
Ganha dez contos de réis
Na espécie que desejar,
Terá mais a maravilha
Pois darei a minha filha,
Para com ele casar.

Corre a notícia no mundo
E toca a chegar vaqueiro,
Com o intuito de casar
Com a filha do fazendeiro,
Naquela vida risonha
Só iam sofrer vergonha,
Correndo no tabuleiro.
            19
Gato, cachorro, urubu
Chegavam todos encourados,
Para pegar esse boi
Chegavam todos animados,
Viúvos velhos dementes
Que não tinham mais os dentes
Pela moça apaixonados.

Tinha um  tal Vitoriano
Num cavalo alazão,
Vaqueiro velho de fama
Em todo aquele sertão,
Pegou contar pabulagem
Mostrando grande vantagem
Ali presente ao patrão:

-- Meu cavalo Pensamento
Nunca botou boi no mato,
E nem precisou de esporas
E é veloz como o gato,
Todos são conhecedores
Que bois velhos corredores
Nas unhas dele, são patos.

Disse Antônio Benvenuto:
-- O meu cavalo Rucinho,
Para correr na caatinga
Nunca temeu a espinho,
Pra correr não dá cavaco
Corre dentro de buraco
Como em meio de caminho.
                  20
Respondeu José Brejeiro:
-- Meu cavalo Bolandeira,
Nunca encontrou correndo
Boi de canela ligeira,
Nada posso duvidar
Ainda posso encontrar,
Uma vez sendo a primeira.

Diz Pedro Sebastião:
-- O meu cavalo Suvela,
Corre dentro da caatinga
Sem arranhar a canela,
Muitas vezes tem deixado
Boi velho estuporado,
No chão fazendo barrela.

Disse o Neco Bacurau:
-- O meu cavalo Visão,
Corre dentro do buraco
Sem dar um só tropicão,
Boi bravo, vaca maninha
Tudo tem sorte mesquinha,
Derrubo e boto no chão.

Horácio Raposa disse:
-- Meu cavalo Capivara,
Tem o fiel da balança
Que nunca roubou a tara,
Para correr está só
Correndo nunca um cipó,
Pôde arranhar minha cara.
              21
Clemente Juriti disse:
-- O meu cavalo Veado,
Nunca foi comigo ao campo
Para não dar o recado,
Barbatão de pé de serra
Na frente dele só berra,
Depois de estar amarrado.

Benvindo de Souza disse:
-- O meu cavalo Traíra,
Nunca correu na caatinga
Para me deixar na tira,
Se agacha como peba
Corre dentro da cambeba,
Xique-xique e macambira.

Respondeu Martim Piaba:
-- Meu cavalo Sarapó,
Desgraçado é o boi
Que ganhar-lhe o mocotó,
Quando dou–lhe um arrastão
Cai mais ligeiro no chão,
Do que preá em quichó.

Anselmo Trajano disse:
-- O meu cavalo Floresta,
Quando corre atrás de gado
Parece que desembesta,
Ainda o boi sendo brabo
Se eu pegar-lhe no rabo,
Está comigo na testa.
                22
Diz Galdino Saranhão:
-- O meu cavalo Corisco,
Se não fizer o que eu digo
A própria vida eu arrisco,
Pegou o boi Furacão
Mesmo no pé do mourão,
Que morreu lá no aprisco.

Murmurou Félix Pacheco:
-- O meu cavalo Urano,
Para pegar boi no mato
Criou nos ossos tutano,
Se houver bicho que aguente
Desembaraçadamente,
Na caatinga corre um ano.

Disse o Aleixo Pintado:
-- Meu cavalo Pirilampo,
É uma cobra bravia
Quando se estira no campo,
Tem mais força que um mouro
É um trovão dando estouro
É faísca de relâmpago.

Todos contavam vantagens
Ninguém por baixo ficava,
Cada qual o mais esperto
Tudo ali se pabulava,
Na filha do fazendeiro
No grande Boi Mandingueiro
Só era em que se falava.
                 23
Tudo chegava arrufando
Com um gracejo risonho,
Querendo pegar o boi
Naquela ilusão ou sonho,
Sempre chegavam sorrindo
E quando iam saindo,
Era um momento tristonho.

A filha do fazendeiro
A formosa Leonor,
Era uma moça bem alva
Mais linda que uma flor,
Tinha um primor profundo
Abismava a todo mundo,
A filha desse senhor.

Com quinze anos de idade
Tendo formosa grossura,
Tranças louras olhos azuis
De cor celeste bem pura,
Lábios finos bem corados
Pequeninos nacarados,
Com sublime formosura.

Agora, ilustres amigos
Deixemos o anjo formoso,
Vamos falar em Genésio
E no Cavalo Misterioso,
Mais veloz do que um gato
Porque pra correr no mato,
Era também perigoso.
              24
Havia  no  Piauí
Um velho também vaqueiro,
A quem o povo chamava:
-- “O Velho Catimbozeiro”,
Diziam que no sertão
Pegava até barbatão,
Correndo no tabuleiro.

Tinha uma besta velha
Chamada Misteriosa,
Era em quem ele pegava
Boi de fama espantosa,
O cavalo de fiança
Que correndo nunca cansa,
Em quem sustentava a prosa.

Estava quase caduca
E nunca tinha parido,
O velho aposentou ela
Vivia dela esquecido,
Cheia de mofo e gafeira
E da sarna roedeira,
Pensava já ter morrido.

Um dia casualmente
Encontrou a Misteriosa,
Com o bucho muito grande
Gorda e muito famosa,
Ele achou muito engraçado
E ficando admirado,
Disse com ela uma prosa:
                    25
-- No tempo da mocidade
Nunca me deste um poldrinho,
Agora depois de velha
Queres me dar um bichinho?
Só quero que seja esperto
E corra mais do deserto
Do que voa um passarinho.

Pegou a besta e levou
E botou-a no cercado,
À meia-noite pariu
Um poldro bem encascado,
Preto da cor de carvão
Tendo um sino Salomão,
No peito, bem encarnado.

Com a crina amarela
A cauda da mesma cor,
Disse o vaqueiro sorrindo:
-- Que animal de valor!
Não se vê uma costela
Dá um cavalo de sela,
Que não há superior.

O velho com muito gosto
Ensinou-o a campear,
Touro velho orelhudo
Que não podiam pegar,
Davam pra ele de meia
No barro duro ou na areia,
Não podiam escapar.
              26
O velho dava de graça
A pessoa que montasse,
No Cavalo Misterioso
E com esporas furasse,
E o bicho que correndo
No mato bruto tremendo,
Que com ele não pegasse.

Por desventura o velho
Adoeceu de sezão,
Conhecendo que morria
Chamou o filho atenção,
Ali soltando um gemido
Disse: -- Faço-te um pedido,
Filho do meu coração;

-- Você se acaso ficar
Pobre e necessitado,
Venda a casa, venda a terra
Se arremedie com o gado,
Mas o cavalo não venda
Pois ele é uma prenda,
De valor mais sublimado.

-- Não empreste pra ninguém
O cavalo nem a sela,
Faça todo o impossível
Para não se dispor dela,
Ela em cima do cavalo
Satanás se provoca-lo
Você derruba com ela.
               27
-- Esta sela eu herdei
Do finado meu avô,
Que ele tinha herdado
Do velho seu trisavô,
Junto da Boa Esperança
Que recebeu como herança,
Dum tio do bisavô.

-- O velho meu trisavô
Chamava-se Zé Tiúca,
No dia que se danava
Que bulia na cumbuca,
Ali quase ao por do sol
Pegava alma de anzol,
Lubisomem de arapuca.

-- O pai do meu trisavô
Chamava-se Afonso Bojo,
Quando estava danado
Levava tudo de arrojo,
Na terra e no espaço
Pegava Caipora de laço
Mula de padre no fojo.

-- Foi feita mesmo a capricho
De couro de lubisomem,
Fantasma, mula de padre
Bichos que vivem e não comem,
É rainha da floresta
Outra da espécie desta,
Não fará mais, outro homem.
                 28
-- Com esta sela o cavalo
Corre mais do que o vento,
Se por acaso açoitá-lo
Passa do regulamento,
Digo com sinceridade
Tem tanta velocidade
Que passa do pensamento.

-- Quando você montar nele
Precisa sempre ter medo,
Cuidado quando montar-se
Pois não gosta de brinquedo,
Pois ele é misterioso
Além  disso é perigoso,
Carrega oculto o segredo.

-- Além dessas consequências
Ele é cheio de mania,
Fica magro na espinha
Da meia-noite pro dia,
Tanto que quem não conhece
Vendo isto esmorece
E muito até desconfia.

Morreu o velho vaqueiro
Então Genésio ficou,
Com o cavalo de campo
A ninguém nunca emprestou,
Boi velho no Piauí
Virou cágado jaboti,
Nunca mais se pabulou.
               29
Na capa daquela sela
Ele achou um Santo Antônio,
Uma oração muito forte
Que espantava o demônio,
Um postal com dois amantes
Ambos formosos e constantes
Em ato de matrimônio.

Achou também uma cruz
Ainda de Frei Serafim,
A qual tinha um letreiro
Que se via escrito assim:
-- Nesta foi onde morreu
E por nós muito sofreu
Nosso Senhor do Bom Fim.

Um cordão de São Francisco
Em um pano embrulhado,
E mais um rosário bento
Tendo um crucificado,
Genésio examinando
Disse depois suspirando:
-- O velho era preparado.

Na casa do tal Genésio
Arranchou-se um boiadeiro,
Do Rio Grande do Norte
Homem sério e verdadeiro,
Tendo o fato na memória
Lhe contou toda a história,
Do dito boi Mandingueiro.
                30
Quando o boiadeiro viu
O Cavalo Misterioso,
Então disse assustado:
-- Que animal valoroso!
Além da sua bondade
Demonstra a qualidade,
De ser muito perigoso.

-- Não senhor, é muito manso
Porém aqui no sertão,
Boi que não foi ao curral
Derrubo e boto no chão,
Se criar asas e voar
Eu também subo no ar,
E vou com ele ao mourão.

-- E porque você não foi
Ao Rio Grande do Norte,
Pegar um boi que tem lá
Bicho da canela forte!
Não há vaqueiro no mundo
Por mais que seja profundo,
Para muda-lo de sorte.

-- Vaqueiro velho de fama
Que é veloz como bala,
Vai pegar o Mandingueiro
Fica surdo e sai sem fala,
Dar uma carreira medonha
Sofre sempre a vergonha.
Arrasta por fim a mala.
              31
Disse Genésio de fato:
-- Se esse boi é assim,
Porém ele nunca viu
Um  cabra de volta ruim,
No mato sou revoltoso
Meu cavalo é perigoso
Não há mandinga pra mim.

Por hora caros leitores
Vou fazer um paradeiro,
Vou descansar um pouquinho
Pra prosseguir no roteiro,
De Genésio o perigoso
O Cavalo Misterioso,
E o grande Boi Mandingueiro.

Depois, no outro volume
Haveremos de conhecer,
Na pega do Mandingueiro
O que vai acontecer,
Tristeza, angústia, maçada
Prazer, amor e risada,
Para a barriga doer. FIM
             32



O HOMEM DA VACA
E O PODER DA FORTUNA
Francisco de Sales Arêda

Tem pessoa nesse mundo
Que já nasce afortunada,
Embora que passe o tempo
Sem poder arranjar nada,
Mas depois vem a fortuna
Lhe pegar de emboscada.

Por isto conto uma história
Que ouvi contá-la em Trancoso,
De um homem pobre demais
Além disso preguiçoso,
Casado com uma mulher
Do coração generoso.

Há muitos anos atraz
Em uma velha cidade,
Esse pobre residia
Lá no fim do arrabalde,
Tão cheio de precisão
Que causava piedade.

Com a mulher e 10 filhos
O velho Joaquim Simão,
Sofria fome e nudez
Dormindo tudo no chão,
Muitas vezes pra comer
Pedia a população.
               01
Além de grande pobreza
A preguiça devorava,
E quando a mulher as vezes
Em trabalho lhe falava,
Ele todo aborrecido
Dentro de casa exclamava:

-- Trabalhar pra que mulher
Pois trabalho não convém,
Se trabalho fosse futuro
Jumento vivia bem,
O que tiver de ser meu
As minhas mãos inda vem.

-- Vejo tantos que trabalham
Ajuntando o que é seu,
Quando morrem deixam tudo
O trabalho não valeu,
E outros pelo o que vejo
Estão pior do que eu.

-- É mesmo dizia ela:
-- Meu velho é quem tem razão,
Porém vamos se mudar
Para outra região,
Que pode até a fortuna
Nos dar sua proteção.

Joaquim Simão respondeu
-- O meu juízo está todo,
Eu não me mudo daqui
Nem arrastado de rôdo,
Que pedra que muito muda-se
Nunca pode criar lôdo.
                  02
-- Se eu tiver que possuir
Qualquer coisa com fartura,
Não vou sair pelo mundo
Procurando aventura,
Se a fortuna me quiser
Ela mesma me procura:

-- É mesmo, Quinca está certo
Dizia assim a mulher:
-- Aqui nós vamos vivendo
Da forma que Deus quiser,
Vamos esperar pra ver
Se a sorte um dia nos quer.

-- Porém meu velho se anime
Vamos botar um roçado,
Se planta milho e feijão
E depois dele tratado,
Será o lucro na certa
Pra se viver descansado.

-- Mulher deixe de loucura
Que eu já sei como é,
A gente limpando o mato
Vem a cobra e morde o pé,
O sol acaba a lavoura
Nem preá e nem mondé.

-- E mesmo quem trabalhar
Sem dinheiro e sem patrão,
É cavar lageiro duro
Com cavador de pinhão,
Fazer chocalho de cêra
Com badalo de algodão.
              03
-- É verdade maridinho
Você tem razão sobrada,
Porém vejo que nós temos
10 filhos numa ninhada,
E para ceiar-se hoje
Em casa não temos nada.

-- Meu velho pegue a espingarda
E vá na mata caçar,
Nambu, rolinha asa branca
Que é na certa matar,
De noite se faz pirão
Para a negrada ceiar:

-- O seu plano minha velha
Está muito direitinho,
Mas eu pego essa espingarda
Vou matar um passarinho,
Sai o tiro na culatra
E acaba com seu negrinho.

-- Temos batatas de imbu
Se passa elas no ralo,
Com água quente e pimenta
Se faz cabeça de galo,
Todo mundo enche a pança
Que pobre não tem regalo:

-- É mesmo homem está certo
Eu vou cuidar nisto já,
Porém amanhã nós vamos
Tirar um arapuá,
Que o mel daquilo é bom
E melhor o samburá.
             04
-- Tá minha velha, eu não vou
Nem que você faça rôgo,
Que arapuá é fuxico
E ninguém aguenta o jogo,
Da abelha nos mordendo
E a quentura do fogo:

-- É marido, tu não vais
Eu muito acertado macho,
Porém eu tirando lenha
Lá do serrote pra baixo,
Achei onde um peba mora
Bem na beira dum riacho.

-- É bom a gente cavar
Que um peba gordo é presunto,
Simão disse: -- Mulherzinha
Melhor mudar esse assunto,
Porque buraco de peba
É morada de defunto.

-- Nós vamos atrás do peba
Se perde nossa dormida,
Ele engana a gente e foge
Fica a viagem perdida,
Vem um cascavel e morde
Lá a gente perde a vida:

-- Tem toda razão negrinho
Bem calma a mulher dizia:
-- Porém naquela lagoa
Tem peixe em grande quantia,
E eu acho bom a gente
Fazer uma pescaria.
              05
-- Está muito bem negrinha
Mas não se tem, gereré,
E mesmo a lagoa é funda
Que não há quem tome pé,
E danado é se passar
No papo do jacaré.

-- É melhor forrar a esteira
Vamos deitar e dormir,
Amanhã cedo você
Vai pelas casas pedir,
Quando voltar traz comer
Que dá pra tudo remir.

A mulher se conformava
Dizendo: -- Está tudo bem,
E Joaquim Simão dizia:
-- Esforçar-se não convém,
Que quando a fortuna quer
De qualquer forma ela vem.

Assim o velho Simão
Vivia sem dar um prego,
As vezes a mulher dizia:
-- Esta pobreza arrenego,
Em só viver pelas portas
Pedindo mais do que cego.

Então sucedeu um dia
Que um boiadeiro passando,
Com uma grande boiada
Pela estrada aboiando,
Viu na porta de Simão
A pobre mulher chorando.
                06
Perguntou o que ela tinha
Ela mostrou com franqueza,
10 filhos em volta dela
Mortos de fome e nueza,
O homem ficou pasmado
Em ver a grande pobreza.

Pegou uma vaca de leite
Das melhores que havia,
E disse: -- Trate bem dela
Que é de grande serventia,
Para a senhora dar leite
A seus filhos todo dia.

Foi embora o boiadeiro
E a mulher ficou contente,
Mas Simão disse: -- Mulher
Foi muito bom o presente,
Porém esta vaca velha
Só vem dar trabalho a gente.

-- É melhor eu pegar ela
E pra cidade levar,
Que aparece negócio
Para vender ou trocar,
Eu sendo negociante
A gente vai melhorar.

-- É mesmo meu maridinho
O seu plano está certeiro,
Graças a Deus o meu velho
Vai também ser boiadeiro,
E ele pegou a vaca
Saiu tangendo ligeiro.
                07
Quando chegou adiante
Encontrou um camarada,
Tangendo um burro velho
De uma perna desconchavada,
O Simão disse pra ele:
-- Vamos dar uma trocada.

-- E como é o negócio?
Perguntou-lhe o cidadão:
-- Dou um no outro se quer
Respondeu Joaquim Simão:
-- Leve a vaca e dê-me o burro
Está feita a transação:

-- Está trocado disse o homem
E o burro a ele entregou,
Simão seguiu com o burro
E mais adiante ele encontrou,
Um velho com uma cabra
Aí Simão perguntou:

-- Amigo vamos trocar
Esta cabra em meu burrinho?
-- Troca-se agora mesmo
Lhe respondeu o velhinho:
Pode dizer o negócio
Para eu ouvir direitinho.

-- Eu dou o burro na cabra
Se quiser: -- Está feito,
O velho trocou e ele
Seguiu muito satisfeito,
Puxando a cabra e dizendo
-- Fiz um negócio direito.
                   08
Já entrando na cidade
Simão tornou encontrar,
Um sujeito com um galo
Aí só fez perguntar:
-- Este galo é pra negócio
Se quiser vamos trocar.

-- Eu dou esta cabra nele
Se queres pode dizer,
-- Está trocado disse o homem:
Sem nada mais promover,
Simão seguiu com o galo
Todo cheio de prazer.

Quando entrou pela cidade
Encontrou um cidadão,
Que vinha pela calçada
Com um pacote na mão,
Simão disse: -- Este pacote
Se troca num galo ou não?

O homem lhe disse: -- Amigo
Isto é um pão francês,
Que comprei agora mesmo
Na venda do português,
Porém se quiser trocar
A gente troca desta vez.

Pode dizer o negócio
Pra gente ver como é,
-- Eu dou o galo no pão,
Simão respondeu com fé,
Que um pão é muito bom
Pra se tomar um café.

O homem olhou pra ele
E disse: -- Meu camarada,
Um pão é pouco pra dar
Num galo sem voltar nada,
Pegue e pão e dez mil réis
Pra tomar uma bicada.

 E ali mesmo o homem
Pegou o galo e seguiu,
Simão voltou para casa
Chegando adiante viu,
Dois homens falando em troca
A eles se dirigiu,

E perguntou os senhores:
-- Gostam de trocar também?
Eu também sou trocador
Disse um homem: -- Muito bem
O que tem para trocar?
Simão disse: -- Nada tem.

Eu trouxe hoje uma vaca
Que minha mulher ganhou,
Mas já dei quatro trocadas
E tudo já se acabou,
Tenho um pão e dez mil réis
Que foi só o que sobrou.

Um dos homens perguntou-lhe:
-- E como foi que trocou,
Pra só ganhar dez mil réis?
Então você se enganou,
Joaquim Simão aí disse:
Todas trocas que traçou.
                  10
Disse ele: -- Eu troquei a vaca
Num burro mais um freguês,
Dei o burro numa cabra
Depois no galo pedrês,
Peguei a cabra e o galo
Troquei pelo um pão francês.

Os homens sorriram muito
Com as trocas de Joaquim,
E um disse: - Sua esposa
É quem vai achar ruim,
Porque você pegou hoje
A vaca dela e deu fim.

Joaquim Simão disse:- - Qual
Na minha velha confio,
Pois tudo que eu fizer
Ela aceita sem desvio,
Disse o homem: -- Mas agora
Vai se dar um desafio.

Pois a mulher pode ter
O mais leal coração,
Ser mansa como a ovelha
E boa como a razão,
Mas dando fim no que é dela
Tem que ouvir reclamação.

Pra isto vamos fazer
Uma aposta sem demora,
Dez contos em seus dez mil réis
Nós casa o dinheiro agora,
Se ela não reclamar
Você vai ganhar na hora.
                11
-- Aceito disse Joaquim
E o dinheiro casaram,
Nas mãos de três testemunhas
O valor depositaram,
E pra resolver o caso
Na mesma hora marcharam.

No casebre de Joaquim
Estava a mulher sentada,
Com os 10 filhos ao redor
Bem na porta de entrada,
Quando Joaquim foi chegando
Perguntou ela animada.

-- Meu velho cadê a vaca
Trocou por lá ou vendeu,
Fez bom negócio negrinho?
Teve bom lucro ou perdeu?
Joaquim disse: -- Minha velha
Vou contar o que se deu.

Saí daqui com a vaca
Já bem perto da cidade,
Encontrei um cidadão
Com um burro de qualidade,
Troquei a vaca no burro
Com a maior facilidade.

-- Muito bem meu maridinho
Um burro serve demais,
Carrega carga e também
Toda viagem se faz,
Onde você deixou ele?
Quando é que você traz?
                 12
-- Não minha velha o burrinho
Eu fui com ele pra feira,
Adiante encontrei um homem
Com uma cabra de primeira,
Troquei a cabra no burro
Nova bonita e leiteira.

-- Ah! Meu velho você fez
Um negócio que convém,
Quando você trouxer ela
Não vai chorar mais ninguém,
Porque com o leite dela
Os meninos passam bem.

-- É mulher, porém a cabra
Agora está sem cabrito,
E mesmo encontrei um homem
Com um galo muito bonito,
Troquei a cabra no galo
Por ser raça do Egito:

-- Está muito bem meu velho
Você acertou agora,
Que um galo bom no terreiro
Só vem nos trazer melhora,
Quando se for madrugar
O galo acorda na hora.

-- E porque não trouxe o galo
O bichinho pra eu ver?
Joaquim Simão disse: -- Nada
Espere que eu vou dizer
O resultado do galo
Pra minha velha saber.
              13
Segui com ele no braço
Cheguei na rua dei fé,
De um homem com um pão
Do tamanho dum jacaré,
Troquei o galo no pão
Pra nós tomar um café.

-- Sim meu velho este negócio
Foi o melhor que já fez,
Que estão todos com fome
E sendo assim, desta vez,
Vai já tudo encher o bucho
De café com pão francês.

-- Se trouxe o pão me dê logo
Que vou já fazer o café,
Joaquim lhe deu o pacote
E o povo ficou de pé,
Dizendo ao homem da aposta
-- Já viu mulher o que é?

Um companheiro lhe disse:
-- Tá vendo meu camarada,
Perdeu seus dez contos agora
Oh aposta dura danada,
Pra você ver o que é.
Uma mulher conformada.

-- É verdade disse o homem,
Oh mulher besta danada,
Perdi dez contos por causa
Desta velha abilolada,
Joaquim bem que me disse
Que a velha é conformada.
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Ali passou o dinheiro
Quinca disse: -- Muito bem,
Minha velha nós agora
Vamos ser ricos também,
Bem que eu disse que a fortuna
Quando quer proteger vem.

Saiu o homem da aposta
Blasfemando e dando figa,
Dizendo: -- Ah mulher danada
O satanás te persiga,
E Joaquim gritou da porta
Se quer mais aposta diga!

Desse dia por diante
Joaquim Simão controlou-se,
Comprou terra e fez morada
E a trabalhar destinou-se
Com uma grande fazenda
Em pouco anos achou-se.

A pobreza desertou
E a fortuna fez barraca,
Bem na porta da fazenda
Joaquim botou uma placa,
O povo passando lia:
-- Fazenda “Homem da Vaca”.

E o boiadeiro que deu
A vaquinha de presente,
Com muito tempo depois
Passou por lá novamente,
E sabendo da história
Quase morre de contente.
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Portanto caros leitores
Eis a prova com certeza,
Mostrando que a fortuna
É brinde da natureza,
Mas sendo pra morrer pobre
Tem que findar na pobreza.

Mas o pobre nunca deve
Blasfemar porque não tem,
Se conforme e peça sempre
A Jesus o Sumo Bem,
Que pode um dia a fortuna
Vir lhe abraçar também.

Pois assim como Joaquim
Foi um pobre sem valor,
E um dia veio a fortuna
Acalmar a sua dor,
Qualquer um pode também
Ser disto merecedor.

Fazendo fé na fortuna
Sem nunca desanimar,
Aonde encontrá-la dia
Lhe abrace para não soltar,
Estando com ela ao lado
Segure até se acabar. FIM
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