sábado, 8 de dezembro de 2018

CORDEL DIGITADO II


Joaquim Batista de Sena
HISTÓRIA DA MORTE DE MANOEL 
MACHADO E A VINGANÇA DO SEU
FILHO SAMUEL.

Na crise de vinte e cinco
No outro século passado,
Na chapada do Pereiro
Morava Manoel Machado,
Era muito pobrezinho
Mas vivia conformado.

Manoel era casado
Com uma mulher bonita,
Muito amável e carinhosa
Por nome Maria Rita,
E moravam satisfeitos
Naquela serra esquisita.

Manoel tinha a Maria
A mais sincera amizade,
Maria tinha a Manoel
A mais pura lealdade,
E tinha um filho somente
Com dez anos de idade.

Chamava se Samuel
O seu querido filhinho,
Machado e dona Maria
Tinham-se grande carinho,
Era o consolo das mágoas
Deste casal pobrezinho.
               01
Manoel em redor de casa
Quando chovia plantava,
Milho, feijão, mandioca
E sempre quando faltava,
A carne para a mistura
Ele na serra caçava.

Passava dias inteiros
Naquele mato fechado,
E sempre daquela serra
Só voltava carregado,
Com ema, paca e tatu
Couro de onça e veado.

A sua esposa querida
Todo dia ia espera-lo,
Muito adiante no caminho
Contente para abraça-lo,
Amenizar- lhe as fadigas
Naquele peso ajuda-lo.

Quando ele descansava
Ia preparar as caças,
Depois tranquilo ceiava
Sem conhecer das desgraças,
Do luxo e das vaidades
E dos escândalos das praças.

Então se Manoel Machado
Com muito zelo estimava,
Peri um grande cadelo
Que sempre lhe acompanhava,
Nestas caçadas da mata
Quando ele ia e voltava.
                02
Machado se avizinhava
Com um tal José Roberto,
Um sujeito musculoso
Muito sagaz e esperto,
E só moravam eles dois
Naquele grande deserto.

Este tal José Roberto
Era um sujeito bandido,
Criminoso de seis mortes
E pra não ser perseguido,
Destinou-se a ir morar
Naquela serra escondido.

Porém nunca que contasse
A vida a Manoel Machado,
Fazia um ano somente
Que aquele desgraçado,
Morava naquela serra
Um tanto desconfiado.

A esposa de Roberto
Chamava-se Primavera,
Calada, magra e bisonha
Feia como uma pantera,
Como esposa encobria
Os crimes daquela fera.

Machado tratava a eles
Com muito zelo e carinho,
Dizendo: -- Graças a Deus
Chegou-me agora um vizinho,
Pra me fazer companhia
Neste deserto sozinho.
             03
Então Roberto e Machado
Vivia naquela terra,
Cada qual bem satisfeito
Sem ninguém propor-lhe guerra,
E sempre caçava os dois
Unidos naquela serra.

Mas José Roberto como
Era um ente desgraçado,
Começou tratar Manoel
Com muito zelo e agrado,
Na mente de seduzir
A esposa de Machado.

A esposa de Roberto
Era uma negra feiosa,
E a mulher de Machado
Era tão meiga e formosa,
Como uma rosa de maio
Numa manhã neblinosa.

Dona Maria Machado
Conhecendo que o bandido,
Desejava seduzi-la
Como amigo fingido,
Começou repreendê-lo
Sem dizer nada ao marido.

E certo dia Roberto
Preparou uma cilada,
Chamou Manoel Machado
Para darem uma caçada,
Na mente de seduzir
A mulher do camarada.
              04
Saíram os dois camaradas
Uma certa manhazinha,
E lá do mato Roberto
Voltou noutra varedinha,
Para encontrar descuidada
Dona Maria sozinha.

Chegou Roberto na casa
De Machado e encontrou,
Dona Maria sozinha
Falou na porta e entrou,
E depois de estar sentado
Por esta forma falou:

-- Dona Maria eu voltei
Somente para lhe encontrar,
Sozinha na sua casa
E do seu amor gozar,
Pois a paixão que eu sinto
Não me deixa sossegar.

Dona Maria zangou-se
E disse a José Roberto:
-- Atrevido me respeite
E desde já fique certo,
Que eu não sou prostituta
Cabra nefando incorreto.

José Roberto humilhou-se
E ouviu tudo calado,
E disse: -- Dona Maria
Não diga nada a Machado,
Que de hoje em diante juro
Respeitar seu nome honrado.
                05
E saiu dali depressa
Pensando como podia,
Vingar aquela desfeita
Que tanto lhe constrangia,
E ter a glória na vida
De vencer dona Maria.

Pensou mais de vinte planos
No seu coração malvado,
Por fim disse: -- Eu só me vingo
Matando Manoel Machado,
Pois a mulher sem marido
Cai sem querer no pecado.

E desde aquele momento
Se pôs Roberto a pensar,
Qual seria a melhor forma
Para ele assassinar,
Machado e dona Maria
De nada desconfiar.

Porque se o matasse a tiros
A faca ou a bordoada,
Podia dona Maria
Ficar com ele intrigada,
Suspeitando de Roberto
Não se cedia mais nada.

Porém de matar Machado
Não lhe saía da mente,
O satanás colocou-se
Naquela infernal serpente,
E ele forjou consigo
Outro plano diferente,
             06
Roberto chamou Machado
Para darem uma caçada,
E botou em seu bisaco
Uma corda de laçada,
Na intenção de prender
E matar seu camarada.

Manoel Machado aceitou
E seguiu muito contente,
Roberto o vil criminoso
Botou Manoel na frente,
E foi preparando a corda
Para amarrá-lo inocente.

Peri o grande cadelo
Seguia desconfiado,
De vez enquanto na mata
Ele soltava um uivado,
Talvez lamentando a morte
Do dono Manoel Machado.

Lá muito longe da serra
Roberto jogou o laço,
E laçou Manoel Machado
Por cima de cada braço,
E deu-lhe uma grande queda
Quase lhe tora o espinhaço.

Machado exclamando e disse:
-- O que é isto Roberto?
Respondeu-lhe o monstro:--Eu sou
Seu inimigo secreto,
E vim consigo somente
Mata-lo aqui no deserto.
                07
Depois que amarrou Machado
Com aquela inquirideira,
Arrastou ele por cima
De toco pedra e barreira,
E o amarrou seguro
No tronco de uma aroeira.

Machado pedindo a ele:
-- Roberto por Deus me diz,
Que crime eu te pratiquei
Qual foi o mal que te fiz,
Porque me matas Roberto?
Tem dó de um pobre infeliz!

Nisto Peri foi chegando
E vendo o dono inquerido,
Partiu para morder Roberto
Porém aquele bandido,
Deu-lhe um tiro e o cachorro
Correu soltando ganido.

Roberto lhe respondeu:
-- Machado eu quero saber,
Quantos dias nessa mata
Você passa pra morrer,
Amarrado neste tronco
Sem comer e sem beber.

Machado ouvindo a sentença
Tristonho molhou para o chão,
Naquele tronco inquerido
Rezou logo uma oração,
Na presença de Roberto
Fez a Deus sua contrição.
                08
-- Meu Jesus ouvi os rogos
Dum miserável sem sorte,
Que não tarda deste mundo
Fazer seu último transporte,
Pois já sinto no meu corpo
Os calafrios da morte.

-- Vós morreste no Calvário
Sobre um madeiro cravado,
E eu também vou morrer
De fome e sede afrontado,
Nestas brenhas esquisitas
Sobre um madeiro amarrado.

-- Pela hóstia consagrada
Pelo cálix e pela pia,
Ouví meus tristes lamentos
Jesus, José e Maria,
Vindes assistir a hora
Da minha triste agonia.

-- Não sinto tanto meu Deus
Morrer assim cruelmente,
Como sinto separar-me
Do meu filhinho inocente,
E minha esposa que fica
Chorando amargosamente.

Nisto o monstro Zé Roberto
Falou pra Manoel Machado:
-- Meu amigo eu vou ficar
Com sua mulher ao meu lado,
E o seu filho eu vou cria-lo
Pode morrer descansado.
               09
Machado disse: -- Roberto
Tens dó do meu padecer,
Se minha mulher foi falsa,
A mim eu quero saber
Me soltas que eu vou embora
E nunca mais ela me ver.

Roberto disse: -- Machado
Ela não quis me aceitar,
Então por este motivo
Eu vou te assassinar,
Porque mulher sem marido
É melhor de conquistar.

Machado exclamando disse:
-- Meu Deus tende piedade,
Defendei minha mulher
Do gozo da vaidade,
Meu Jesus lhe conservai
Sua santa castidade.

Disse Roberto: -- Machado
Deixe de tantas heresias,
Eu não sinto as angústias
Destas tuas agonias,
Fique aí eu vou embora
Só volto aqui com três dias.

José Roberto voltou
Deixando Manoel Machado,
Enquerido lá na mata
Na aroeira amarrado,
E chegou na sua casa
Bem tranquilo e disfarçado.
                 10
Quando foi anoitecendo
A esposa de Machado,
Foi na casa de Roberto
Com o filhinho dum lado,
Perguntar pelo marido
Já com bastante cuidado.

Roberto disse: -- Eu segui
Junto com Manoel Machado,
Nos apartamos na serra
Fomos caçar separado,
E eu pensei que a tempo
Ele tivesse chegado.

Dona Maria aí disse:
-- Meu Deus o que terá sido,
Será que Manoel Machado
A onça tenha comido?
Valha-me Nossa Senhora
Meu Deus cadê meu marido?

Roberto lhe respondeu:
-- Mulher deixa de chorar,
Seu marido não morreu
Vá pra casa esperar,
Que daqui pra meia noite
Ele não tarda voltar.

Dona Maria voltou
Como louca soluçando,
Passou a noite acordada
Em pranto se lastimando,
Fazendo preces a Deus
Pelo marido esperando.
               11
Quando o dia amanheceu
Ela chorosa e aflita,
Chamou seu filho e seguiu
Pra aquela serra esquisita,
Foi procurando o marido
Lamentando a sua dita.

O monstro José Roberto
Também seguiu procurando,
Junto com dona Maria
Aqui, ali disparando,
Seu bacamarte na serra
E por Machado gritando.

Porém como ele sabia
Lá onde estava Machado,
Numa gruta cavernosa
Na aroeira amarrado,
Procurava ao contrário
Distante pra outro lado.

Assim procuraram o dia
Naquela mata fechada,
À tarde dona Maria
Voltou mais contrariada,
Lastimando a sua sorte
Chorando desenganada.

José Roberto fingiu-se
Tristonho e penalizado,
E com três dias seguiu
E foi visitar Machado,
No centro daquela serra
Na aroeira amarrado.
             12
De longe foi avistando
Peri muito entristecido,
Juntinho ali de Machado
Uivando e dando ganido,
E pressentindo Roberto
Correu logo espavorido.

Roberto inda deu-lhe um tiro
Mas o cachorro livrou-se,
E correu de mata adentro
E num rochedo ocultou-se,
Então o monstro Roberto
De Machado aproximou-se.

Roberto chegou pra perto
Machado estava caído,
No tronco da aroeira
Amarrado e inquerido,
O rosto desfigurado
E o olhar amortecido.

Morrendo de fome e sede
Atacado dum cansaço,
Em cada um amarradio
No corpo tinha um inchaço,
As coradas estavam escondidas
Dentro da carne dos braços.

Eram seis horas da tarde
O sol se punha dourado,
E pelas brechas da mata
Tingia Manoel Machado,
Cobrindo o corpo do mártir
Com um labirinto encarnado.
                  13
Roberto olhou pra Machado
E chamou pelo seu nome,
Dizendo: -- Meu camarada
Sem dúvida estás com fome,
Amarrado neste tronco
Há três dias que não come.

Machado ainda fez força
E ajoelhou-se no chão,
Dizendo a José Roberto:
-- Tendes de mim compaixão,
Dai-me água pra beber
Me tira desta prisão.

Roberto lhe respondeu:
-- Machado morra contrito,
Olhas que tua mulher
Tem o gênio do maldito,
Por isso eu vou te matar
De fome neste esquisito.

Machado fitou Roberto
Com um olhar moribundo,
Muito cansado e aflito
Deu um gemido profundo,
E disse:--Meus Deus não tarda
Me despedir deste mundo.

Roberto sorrindo disse:
-- Amigo Manoel Machado,
Fique aí que eu vou embora,
Então lhe faço avisado,
Só volto aqui com três dias
Pra saber do seu estado.
               14
Machado olhou para o céu
E nada disse a Roberto,
E o monstro foi embora
Deixando o pobre por certo,
Morrendo de fome e sede
Amarrado no deserto.

Roberto chegou em casa
Se fingindo estropiado,
E disse a dona Maria:
-- Eu procurei com cuidado,
Toda serra e não achei
Nem vestígio de Machado.

Dona Maria Machado
Deu um enorme gemido,
E desmaiou na cadeira
Com o corpo esmorecido,
E despertou já nos braços
Da esposa do bandido.

Muito fraca e abatida
Tristonha e desconsolada,
Seguiu pra sua casinha
Chorando pela estrada,
Deitou-se e perdeu o sono
Passou a noite acordada.

Zé Roberto bem cedinho
Fingindo foi visitar,
Dona Maria e lhe disse:
-- Deixe de tanto chorar,
Que seu marido está vivo
E não tarda mais a chegar.
                  15
No sexto dia seguinte
Roberto o grande bandido,
Dirigiu-se para a serra
Mostrando-se entristecido,
E foi olhar pra Machado
Se já tinha falecido.

Encontrou o quase morto
Muito inchado e arquejando,
Mas olhou para Roberto
Lhe falando muito brando,
E disse: -- José Roberto
Eu já estou me ultimando.

Depois perguntou a ele
Com a voz enfraquecida,
-- Roberto por Jesus Cristo
E Maria Concebida,
Me diz como vai a pobre
De minha esposa querida.

Roberto disse: -- Machado
Ela está é quase louca,
De chorar e de falar
Em você já ficou rouca,
Nunca mais um só instante
Tirou seu nome da boca.

Machado fez um silêncio
Depois falou novamente,
Dizendo: -- José Roberto
Meu corpo já está dormente,
E eu não sinto as angústias
Que tinha anteriormente.
                 16
-- Pois vejo em redor de mim
Uma grande Gerarchia,
Cantando hino e louvor
Toda noite e todo dia,
Milhões de anjos de asas
Me fazendo companhia.

-- Eu penso que estou
No jardim do Paraíso,
Nisso o monstro Zé Roberto
Fez pra ele um ar de riso,
Dizendo: -- Este desgraçado
Já perdeu todo juízo.

E disse: -- Manoel Machado
-- Fique aí nesse regalo,
Só volto aqui com três dias
E quando vir visita-lo
Trago uns ferros pra cavar
Uma cova e enterrá-lo.

E Zé Roberto voltou
De espirito sossegado,
Doma Maria sabendo
Que ele tinha chegado,
Chorando foi perguntar
Por notícias de Machado.

O monstro lhe respondeu
Por esta maneira assim:
-- Dona Maria a senhora
Tome um conselho de mim,
Vá procurar outro esposo
Que aquele já levou fim.
                17
Dona Maria Machado
Tomou por uma pilhéria,
Saiu dizendo consigo:
-- Eu sou uma mulher séria,
Portanto eu não venho mais
Na casa desta miséria.

Chegou na sua casinha
Pensando no seu marido,
E olhando seu filhinho
No berço adormecido,
Exclamou: -- Meu Pai do céu
Tudo Jesus é servido.

Quando o dia amanheceu
Cuidou do seu necessário,
Pela a alma do esposo
Rezou ela o seu rosário,
Porém não se conformava
Com seu viver solitário.

Na manhã do sétimo dia
O cachorro de Machado,
Veio visitar a casa
Magro com fome e vergado
Quando viu dona Maria
Chorando deu um uivado.

Dona Maria gritou:
-- Meu cachorro está doente,
Pegou um pau pra mata-lo
O cachorro descontente,
Deu outro uivo e voltou
Para a mata novamente.
               18
Com nove dias Roberto
O temeroso bandido,
Foi olhar para Machado
Levando um ferro escondido,
Pra cavar-lhe a sepultura
Se já tivesse morrido.

Chegou junto de Machado
À tarde quase aos cafús,
Encontrou-o quase morto
Os molhos tesos sem luz,
Abrindo a boca e chamando
Pelo nome de Jesus.

Porém naquele momento
Ouviu ele um alvoroço,
Um relinchado tremendo
Que encheu-lhe de sobroço,
E ele correu de medo
Daquele grande remorso.

No décimo dia Roberto
Pelo remorso atacado,
Dirigiu-se para a mata
Correndo quase assombrado,
E foi enterrar o corpo
Do mártir, Manoel Machado.

Chegando lá atacou-lhe
Um remorso ainda mais forte,
Olhando para o cadáver
Meditando a sua sorte,
Nisso Machado verteu
A última lágrima da morte.
                  19
Cavou uma sepultura
E cortou com um facão,
As cordas que o prendiam
E ali enterrou no chão,
E voltou pra sua casa
Com grande perturbação.

E o monstro Zé Roberto
Ficou impressionado,
E todo dia ele ia
Correndo quase assombrado,
Visitar aquela cova
Do mártir Manoel Machado.

E o que mais lhe perturbava
Quando ele chegava ali,
Junto da cova do mártir
Era o cachorro Peri,
Chorando naquela serra
Por dentro do Taquari.

E quando ele ia chegando
O cão corria assombrado,
E quando ele se ausentava
O cão vinha uivar deitado,
Chorando em cima da cova
Do mártir Manoel Machado.

Com quinze dias depois
José Roberto a procura,
De dar um tiro no cão
Temendo alguma censura,
Achou o cadelo morto
Em cima da sepultura.
              20
E voltou pra sua casa
Pesaroso e descontente,
A noite nada dormiu
Vendo o diabo em sua frente,
Toda hora e todo instante
Dando pulos de contente.

Roberto lhe esconjurava
Toda hora e todo dia,
Porém aquele fantasma
Toda hora lhe dizia,
Não há Santo que me tire
Também da sua companhia.

Com poucos dias Roberto
Já estava acostumado,
Com a sombra do demônio
Vivendo sempre a seu lado,
E começou perseguir
A esposa de Machado.

Visitando a casa dela
E lhe fazendo favores,
Lhe tratando muito bem
Com os risos sedutores,
Sempre falando em história
De assunto de amores.

E quando ele ia à caçada
E matava algum veado,
Mandava ligeiramente
Levar com grande cuidado,
Um quarto ou mesmo uma banda
Pra viúva de Machado.
            21
Ela muito agradecia
A oferta do bandido,
Pois coitada inocente
E não vinha em seu sentido,
Que aquele miserável
Assassinou seu marido.

E continuou o monstro
Lhe fazendo gratidão,
Todo dia se gabando
Que tinha um bom coração,
Só a fim de lhe botar
Na vala da perdição.

Dona Maria odiava
Aquele monstro cruel,
E como era decente
Honesta casta e fiel,
Dedicou-se a trabalhar
Com seu filho Samuel.

Samuel que já contava
Onze anos de idade,
Sofrendo as tristes angústias
Do rigor da orfandade,
Chorava pelo seu pai
Que fazia piedade.

Certo dia Samuel
Viu sua mãe dando ai,
Lhe disse: -- Mamãe querida
Da minha ideia não sai,
Eu penso que Zé Roberto
Foi quem deu fim a meu pai.
                22
Dona Maria lhe disse:
-- Meu filho eu voto contigo,
Seu pai era vivo e ele
Quis me jogar no perigo,
Sendo um amigo respeita
A mulher do seu amigo.

-- E ainda continua
Com essa má intenção,
Me dedicando favores
Com agrado e sedução,
Só a fim de me jogar
Na vala da perdição.

-- E eu já soube que ele
Aqui vive foragido,
Por umas mortes que fez
Para não ser perseguido,
E eu não aceito mais
Favor daquele bandido.

Samuel disse: -- Mamãe
Não chore mais, se conforte,
Se ele matou meu pai
Quando eu ficar rapaz forte,
Juro por Deus que pretendo
Mata-lo da mesma morte.

Continuou Samuel
A crescer nesta intenção,
Com quinze anos já tinha
Força que só um leão,
Era forte e musculoso
Que parecia um Sansão.
              23
Roberto o grande assassino
Vivia desconfiado,
E logo que Samuel
Ficou um rapaz formado,
Ocultou-se mais da casa
Da viúva de Machado.

E Samuel muito calmo
Começou investiga-lo,
Sobre a morte de seu pai
Para poder ataca-lo,
E Zé Roberto cismando
Começou a odiá-lo.

Samuel de vigilância
Com aquele cangaceiro,
Começou caçar com ele
Na chapada do Pereiro,
Porém com todo cuidado
Naquele mau companheiro.

No lugar onde Roberto
Sepultou Manoel Machado,
Com dois anos começou
Aparecer um molhado,
E verter água da terra
Daquele chão ressecado.

As árvores logo cresceram
Sentindo a terra molhada,
No pino do meio dia
Vinha toda passarada,
Trinar naquele sombrio
Daquela serra escampada.
                  24
O monstro José Roberto
Era onde descansava,
Da sombra do satanás
Que sempre lhe perturbava,
Quando ele chegava ali
Ela de si se ausentava.

Samuel num dia Santo
Convidou José Roberto,
Para caçarem na serra
E Deus destinou por certo,
Que naquele mesmo dia
Fosse o crime descoberto.

Seguiram os dois caçadores
No seu rumo diferente,
Era quase o meio dia
O sol tremia de quente,
A cigarra nos gravetos
Soltava um canto estridente.

Samuel deu uma queda
Lá de cima dum telhado,
Quebrou a cabaça d’água
Que conduzia dum lado,
Ficou com sede e sem rumo
Ali desorientado.

Perdeu-se em cima da serra
Sem saber pra onde ia,
A sede foi lhe apertando
No pingo do meio dia,
Os rochedos faiscavam
O sol de quente tremia.
               25
Gritou muito por Roberto
Mas não foi correspondido,
Subiu num grande rochedo
A fim de prestar sentido,
A falda daquela serra
Onde ele estava perdido.

De lá de cima da serra
Samuel observou,
Um arvoredo tão verde
Que a vista encandeou,
Ele disse: -- Ali tem água
E pra lá se encaminhou.

Quando ele chegou no canto
Admirou o sombrio,
Observou o molhado
Ali naquele baixio,
No arvoredo tremia
Uma coruja de frio.

Samuel observando
Aquele canto molhado,
Começou cavando a terra
Cada vez mais animado,
E para o centro da terra
Foi encontrando alagado.

Vendo a terra verter água
Ficou bastante contente,
Metendo a mão encontrou
Uma coisa diferente,
Tirando pra fora viu
Que era um crânio de gente.
               26
Samuel disse:- - Meu Deus
Quem foi esta criatura,
Que morreu neste deserto
E teve tanta ventura,
Que depois de sua morte
Alguém deu-lhe a sepultura?

E metendo a mão de novo
Trouxe a medalha dum Santo,
Quando olhou para a medalha
Desmanchou-se ali num pranto,
E ficou esmorecido
Sem poder sair do canto.

Pois Samuel se lembrou
Que aquele medalhão,
Era seu pai quem usava
Enfiado num cordão,
Com a imagem gravada
Da Virgem da Conceição.

Enquanto ali Samuel
Como louco soluçando,
Tirava os ossos do pai
Daquela cova chorando,
O bandido Zé Roberto
Já vinha se aproximando.

Vendo Samuel chorando
Tirando os ossos do chão,
Apontou seu bacamarte
E deu um tiro a traição,
Só atingiu Samuel
No dedo mínimo da mão.
                 27
Samuel gritou pra ele:
-- Erraste o tiro assassino,
Te prepara pra morrer
Cabra insolente e mofino,
E partiu pra Zé Roberto
Puxando o facão “colino”.

José Roberto gritou:
-- Se vir lhe sucede mal,
Se previna que você
Também não é imortal,.
E partiu pra Samuel
Também puxando o punhal.

Quando ambos se encontraram
Roberto como um leão,
Avançou pra Samuel
Com o seu punhal na mão,
Samuel também travou-se
Lhe cutilando a facão.

José Roberto avançava
Também como um insensato,
Samuel o cutilando
Dava pulos como um gato,
Saltando pedra e barrancos
Torcendo moitas de mato.

Roberto na grande luta
Foi de arrojo pelo chão,
Samuel indignado
Deu-lhe um golpe de facão,
O punhal saltou distante
Com a munheca da mão.
                28
O monstro caiu gritando
Todo tremendo de medo,
Samuel disse: -- Bandido
Agora neste degredo,
Sobre a morte do meu pai
Tu me descobre o segredo.

José Roberto apanhando
Já com um braço cortado,
Descobriu a Samuel
Como assassinou Machado,
Naquela serra esquisita
Com fome e sede amarrado.

Samuel pegou Roberto
E disse para o bandido:
-- Você vai pagar a morte
Do meu velho pai querido,
Pois quem com o ferro fere
Com o mesmo será ferido.

Eu não irei te matar
Com fome e sede amarrado,
Porém irei te deixar
Com esse braço cortado,
Perdido neste esquisito
Com cada olho furado.

Se tu saíres daqui
Sozinho cego de guia,
Sem auxilio de ninguém
Desta grande travessia,
Eu perdoarei teu crime
E a tua tirania.
              29
-- E se tu não atinares
Pra guiar num rumo certo,
Para o lado que tu moras
Seis léguas não são tão perto,
Morrerás de fome e sede
Perdido neste deserto.

Assim Samuel deixou
Roberto o grande bandido,
Com os dois olhos furados
E com um braço partido,
Chorando dentro da mata
E tateando perdido,

Chegando em casa contou
Aquele triste passado,
Sua mãe chorando disse:
-- Meu filhinho abençoado,
O filho que vinga o pai
Para Deus não tem pecado.

Pois no quarto mandamento
Jesus Cristo manda honrar,
O teu pai e a tua mãe
Também manda castigar,
Em suas misericórdias
A pessoa que errar.

Deus do céu condena a quem
Matar o seu semelhante,
Mas quem abate o perverso
Deus a bênção lhe garante,
Como abençoou Davi
Quando matou o gigante.
                  30
Samuel naquele instante
Foi na casa do bandido,
E deu parte a mulher dele
Do enorme sucedido,
A Primavera chorando
Foi procurar marido.

Então procurou Roberto
Na serra o dia primeiro,
E em continuação
E segundo e o terceiro,
No quarto dia encontrou-o
Morto num despenhadeiro.

A negra enterrou Roberto
No pé de uma serrania,
Num lugar muito esquisito
Naquela mata bravia,
Assim Roberto pagou
Uma conta que devia.

E tomada de desgosto
Pela morte do marido,
Mudou-se daquela serra,
De coração constrangido,
E foi morar bem distante
Num lugar desconhecido.
                 31
Jesus como pai bondoso
Ordenou que Samuel,
Abatesse aquele monstro
Questionário e cruel,
Ultimando uma serpente
Indigno de ser vivente
Malfazejo e infiel.

Bateu-se contra Roberto
Assassino e desordeiro,
Teve que vingar seu pai
Investigando-o primeiro,
Sabendo se defender
Tolerou até saber,
As máximas do cangaceiro. FIM
                  32



A Vida de um Vaqueiro Valente

Ou a Vaquejada no Céu
João Lucas Evangelista

Sou um poeta que vive
Da poesia somente,
Porém gosto duma história
Versada em alta patente,
Que se vê moça bonita
Casar com rapaz valente.

Para quem gosta de luta
De ver a palha voar,
Penetre no fim do livro
Que daqui pra terminar,
Se sabe como um rapaz
Tem estética pra brigar.

Dando volta na memória
Vou traçar em poesia,
Um romance destacado
Que todo mundo aprecia,
A história de um vaqueiro
Que passou-se na Bahia.

Chamava-se Lucilane
O leitor bem compreenda,
Por isso esse menino
Já nasceu de encomenda,
Pra montar cavalo brabo
E trabalhar em fazenda.
             01
Logo desde criancinha
Seu pai lhe deu a um senhor,
A um cidadão ricaço
Por nome João Salvador,
Tinha diversas fazendas
Era grande agricultor.

Em cada fazenda ele
Apoiava cangaceiro,
Apreciava na vida
Moça bonita e dinheiro,
Cavalo de campear
Homem valente e vaqueiro.

Quando o pai de Lucilane
Foi o menino entregar,
Disse: -- Seu João cuidado
Pois eu vou lhe avisar,
Que meu filho é impossível
De alguém lhe aguentar.

O velho disse: -- O garoto
Tem traço de valentão,
Vou criá-lo com cuidado
E quando tiver rapagão,
Quero ver se ele presta
Para pegar barbatão.

E começou o menino
No traquejo muito cedo,
Tinha muito amor ao gado
Campeando no degredo,
Nunca temia a visão
Nem de nada tinha medo.
                02
Ele só tinha um defeito
Nunca gostou de amigo,
Menino nas unhas dele
Corria grande perigo,
Dava num batia noutro
Que parecia um castigo.

O major tinha uma filha
Por nome de Carmelita,
Contava dezesseis anos
Era uma moça bonita,
Além de ser filha única
Era fidalga essa dita.

Vou comparar pelo menos
Sua beleza em meu tema,
Embora que eu seja fraco
Pra expressá-la em poema,
Pois era muito mais linda
Que as estrelas do cinema.

Os olhos acastanhados
E as faces cor de rosa,
Entre as moças camponesas
Era ela a mais formosa,
Mesmo sem usar perfumes
Carmelita era cheirosa.

Tinha o coração fechado
Pois nunca amou a ninguém,
Mas quando viu Lucilane
Começou lhe querer bem,
E o menino gostava
De Carmelita também.
            03
Tinha apenas doze anos
Não conhecia o amor,
E ela com dezesseis
Tinha um porte encantador,
Lucilane só pensava
Ser da jovem inferior.

E palestrava com ela
Somente por distração,
Pois ela tinha nobreza
Por ser filha do patrão,
Sem saber que ela vivia
Com ele no coração.

De todo povo da casa
A quem mais ele atendia,
Era a jovem Carmelita
Pois lhe tinha simpatia,
E Carmelita por ele
A mesma paixão sentia.

Carmelita não deixava
Ele ir para o pesado,
Porque seu gosto era vê-lo
Num bom cavalo montado,
Todo vestido de couro
Correndo atrás do gado.

Lucilane sem saber
Que ela era sua dileta,
Lhe deixava apaixonada
O seu porte de atleta,
Além de aboiar bonito
Tinha os traços de poeta.
              04
No seu aboio dizia:
-- Êh pra lá vaca bonita,
No lugar do teu chocalho
Um belo laço de fita,
Teu nome é Rosa do Prado
O mimo de Carmelita.

Quando Carmelita via
O seu amor verdadeiro,
Todo vestido de couro
Dizia no desespero:
-- Ah se eu fosse para o campo
Na garupa do vaqueiro!

Ao completar quinze anos
Perdeu do sossego a paz,
Pois ali nenhum vaqueiro
Igualava o seu cartaz,
Os homens da redondeza
Todos marcavam o rapaz.

Porque Lucilane era
Pelas moças invejadas,
E todas elas queriam
Serem suas namoradas,
Com isto surgiu um ódio
Das outras rapaziadas.

Se ia para uma festa
Ou para uma cantoria,
As moças cercavam ele
Num cortejo de alegria,
Ele prosava com toda
Mas nenhuma preferia.
              05
Carmelita com ciúmes
Levava a vida a chorar,
E Lucilane dizia:
-- Eu nasci pra ti amar,
Embora que a senhora
Não queira me acreditar.

Carmelita respondia:
-- Não tenho consolação,
Você vive a maltratar
O meu pobre coração,
E namorando comigo
Somente por distração.

Lucilane assim dizia:
-- A senhora é tão bonita!
Portanto assim não convém
Viver chorosa e aflita,
Pois todo rapaz formoso
Só fala em Carmelita.

Carmelita respondia:
-- Não adianta , criança,
Tu vives desta maneira
Me roubando a esperança,
De querer quem não me quer
Meu coração não descansa.

Lucilane disse: -- Calma
Vá repousar no seu leito,
Que vou cuidar do meu gado
Também sentindo no peito,
A dor que a senhora sente
Se eu pudesse dava jeito.
                06
Vamos deixar Carmelita
Por Lucilane chorando,
Para falar nas fazendas
Que o tempo está passando,
E as festas de apartação
Já estão se aproximando.

Muito antes, quatro meses
O fazendeiro mandava,
Reunir os poldros brabos
E o rebanho apartava,
E o vaqueiro mais destro
Primeiramente montava.

Lucilane tinha esgrima
Mas não era bem treinado,
Carmelita não deixava
Fazer serviço arriscado,
Se não como domador
Não era classificado.

Logo de todas fazendas
Começaram a chegar,
Vaqueiro forte e disposto
Pra nos cavalos montar,
E o que fosse mais destro
Tinha o primeiro lugar.

Entre os animais havia
Um poldro grande melado,
Que era de Carmelita
E seria premiado,
O vaqueiro que montasse
E o deixasse esbravejado.
                07
Pois já era a quarta vez
Que ele ia ao estrovo,
Ninguém o domesticaria
E haveria de vir de novo,
Esse poldro na fazenda
Era o assombro do povo.

Quando os domadores viam
O tal cavalo melado,
Pensavam ser o demônio
Em animal transformado,
Diziam: -- Quem for montar nele
Será logo esbagaçado.

Pois ele já tinha morto
Dois domadores estrepados,
Três vaqueiros da fazenda
Tinham sido esbagaçados,
Na última veio dois homens
Voltaram descangotados.

Por isso ninguém montava
Naquele poldro voraz,
Lucilane disse: -- Eu juro
Como rasgo o seu cartaz,
Deixarei de ser vaqueiro
Se ele ficar em paz.
           
Um vaqueiro disse: -- Lane
Você gosta de brincar,
Pensa que domar cavalo
É no mato campear,
Derrubar garrote manso
E pelo campo aboiar?
              08
-- No meu posto de vaqueiro
Não sou desmoralizado,
Faz vergonha uma fazenda
Que tem vaqueiro afamado,
E não tem um pra deixar
O poldro domesticado.

Carmelita nesta hora
Segurou na sua mão,
Pedindo por todos os santos:
-- Lucilane não vá não,
Pois eu não quero te ver
Morto estirado no chão.

Disse ele a Carmelita:
-- Medo para mim é manha,
Eu mostrarei à senhora
Que triunfo na campanha,
Pois a vida é como um jogo
Que se perde ou se ganha.

Na fazenda se encontrava
Todo povo reunido,
Dizendo que o rapaz
Estava doido varrido,
Os vaqueiros desejavam
Ver Lucilane caído.

Um vaqueiro corpulento
Disse pra Lane a sorrir:
-- Eu aposto quatro contos
Como você vai cair,
Se quiser vamos fechar
Para eu me divertir.
              09
Lucilane disse: -- Aposto
Na certeza de ganhar,
Se o bicho me vencer
E hoje eu não lhe amansar,
Jogo o meu gibão no mato
Não quero mais campear.

Mais ou menos uma hora
A montagem começou,
O poldro vendo o vaqueiro
Estremeceu e rinchou,
Lucilane deu um salto
E dum pulo se montou.

Disse para o estribeiro:
-- Pode o cabresto cortar,
E deixe por minha conta
Este danado pular,
De cima ele não me tira
Ele hoje há de cansar.

O cavalo se viu livre
Quando o estribeiro cortou,
O cabresto do mourão
O bicho desembestou,
Deu pulos, que um redemoinho
De poeira levantou.

Carmelita se valia
De Deus e Nossa Senhora,
O povo todo correu
Ficaram olhando de fora,
E Lucilane montado
Lhe furando de espora.
                 10
Nos saltos mais perigosos
O vaqueiro não molgou,
Nisso o cavalo caiu
E ligeiro se levantou,
E Lucilane montado
Na sela nada tombou.

E o pátio da fazenda
Ficou todo escavacado,
Derrubou uma porteira
E arrombou um cercado,
E desembestou no campo
Dentro do mato fechado.

O povo seguiu atrás
Já todo mundo assombrado,
Dizendo que o cavalo
Já estava endiabrado,
E o vaqueiro era um homem
Em satanás transformado.

Por fim a cia quebrou-se
E a sela escapuliu,
Ele grudou-se no lombo
E de cima não saiu,
Quebrou-se rédea e cabresto
Nisso o cavalo caiu.

Ele não fez mais ação
Tremendo e muito cansado,
O suor correndo em bica
E Lucilane escanchado,
Porém não sabia por onde
O gibão tinha ficado.
              11
Pegou o cavalo e disse:
-- Você hoje se embaraça,
E fica como um cordeiro
Do contrário se desgraça,
Vai bater na caixa-prego
Mas eu mostro a minha raça.

Aí trouxeram um cabresto
E Lucilane botou,
Na cabeça do cavalo
Que logo se levantou,
Lhe passando a mão na crina
Em osso mesmo montou.

Se dirigiu para casa
Porém não quis mais pular,
Bambo e de cabeça baixa
Que fazia admirar,
Lane disse: -- Brevemente
Eu te ensino a campear.

No terreiro da fazenda
Deixou o poldro amarrado,
Brando e de cabeça baixa
E o povo acelerado,
Nesta hora também foi
Por Carmelita abraçado.

E depois de muitas palmas
Carmelita ali falou:
-- O cavalo agora é seu
Com muito gosto eu lhe dou,
E mais três contos de réis
Do fazendeiro ganhou.
               12
Lucilane ali beijou-lhe
As mãos tirando o chapéu,
E disse neste cavalo
Eu campeio até no céu,
E por ser de minha estima
Seu nome será xexéu.

Deste dia por diante
Lucilane se achava,
Senhor de todos vaqueiros
Pois ali se respeitava,
No vaqueiro Lucilane
Todo mundo confiava.

E todo dia bem cedo
Lucilane se montava,
No seu cavalo xexéu
Pelo campo passeava,
Carmelita não comia
Enquanto ele não chegava.

Achava muito bonito
Ele aboiar com o gado,
Deixar o seu coração
Mais a  mais contrariado,
Pois Lucilane não dava
Sinal de apaixonado.

Ele no mato corria
Deitado em cima da sela,
Se desviando de espinhos
Unhas de gato e favela,
Fazendo versos pensando
Na beleza da donzela.
             13
Seu cavalo era um relâmpago
Na pista dum barbatão,
Nunca encontrou touro brabo
Pra não botá-lo no chão,
E dos vaqueiros baianos
Ele era o campeão.

Porém um dia na mata
Um pau pegou-o descuidado,
Deu-lhe grande bordoada
Lhe deixando adoentado,
E Lucilane não pôde
Correr mais atrás do gado.

Às vezes não se acostumava
Com um outro boiadeiro,
O gado urrava no mato
Com a falta do vaqueiro,
Até mesmo a bezerrama
Berrava com desespero.

E Carmelita com pena
De Lucilane chorava,
Fazia muito remédio
E ao seu lado se sentava,
Ele notando ela triste
Por esta forma exclamava:

-- Porque dona Carmelita
Não foge desta tristeza?
Parece uma borboleta
Que num jardim vive presa,
Já não parece ser dona
Duma tão grande beleza!
                 14
Carmelita respondia:
-- Beleza não me convém,
Eu com tanta boniteza
E tu não me querer bem,
E esta minha tristeza
È por ti e mais ninguém.

Lucilane nesta hora
Sentiu no peito tocar,
As centelhas do amor
Sem poder acreditar,
O que ela lhe dizia
Então tornou a falar:

-- Minha jovem Carmelita
Não deves dizer assim,
Eu sendo um pobre vaqueiro
Se atreve a zombar de mim,
Quem sou eu pra possuir
Esta rosa em meu jardim?

Ela disse: -- É impossível
Você querer me aceitar,
Pois é querido por todas
As moças deste lugar,
Embora desde criança
Eu comecei a lhe amar.

--Carmelita eu penso que
Tu estás me chateando,
Será que estou dormindo
Com a senhora sonhando?
Ou do contrário doente
Com febre tresvariando?
                15
Lucilane não me negues
E deixe de caçoada,
Eu sou tua Carmelita
Que chora desesperada,
Não pretendo mais viver
Se por ti não for amada.

Pelas razões de ser pobre
É coisa que não encaro,
Um homem como o senhor
Na Bahia é muito raro,
Na vida de boiadeiro
És o vaqueiro mais caro.

--O perigo é só meu pai
Pois é muito violento,
Deus me livre dele ouvir
Eu falar em casamento,
E eu por ser filha única
Ele é muito ciumento.

-- Carmelita se me amas
Eu também te quero bem,
E creio que não nasci
Pra ter medo de ninguém,
Da forma que sou vaqueiro
Serei brigador também.

Nas festas de apartação
Vou te pedir certamente,
E já sei que esta coisa
Vai ser muito diferente,
Pois se o major não der
Vai se acabar muita gente.
                 16
Carmelita nesta hora
Se abraçou com o rapaz,
Sem saber que um bandido
Vinha chegando por trás,
Se abraçaram e se beijaram
Sem dar fé do capataz.

O cangaceiro correu
Com seu gênio de pantera,
Sabendo que o major
Ficava doido deveras,
Sabendo uma coisa dessa
Passava da besta-fera.

E disse: -- Major acorde
Que o senhor está enrascado,
Pois eu peguei Lucilane
Com Carmelita abraçado,
Juntinho que não passava
Nem um mosquito ensebado.

Com esta voz do bandido
Quase derruba o major,
Que levantou-se dizendo:
-- Aqui esteve melhor!...
E saiu para o terreiro
Sentindo um frio suor.

--Tanto que eu confiava
Naquele vaqueiro nobre,
Mas na raiva que me fez,
O seu cartaz se encobre,
Pois não caso Carmelita
Nem com rico nem com pobre.
                  17
--Há tempo eu desconfiava
Já desta barbaridade,
Porém fechava meus olhos
Pensando ser amizade,
De irmão de criação
Consentia a liberdade.

--Porém de amanhã em diante
Ele vai se endireitar,
Vou reunir meus capangas
Praquele cabra pegar,
E fazer seu casamento
Na fazenda Quebra-Mar.

Escolheu ali dez cabras
De disposto a mais valente,
E explicou-lhes dizendo:
-- Botem o vaqueiro na frente,
E digam que é pra pegarem
O touro lá da vertente.

--Quando vocês se apearem
Na fazenda Quebra-Mar,
Botem nele pra valer
Se ele se revoltar,
Cortem a venta e as orelhas
Querendo podem matar.

E Lucilane inocente
Viu falar no Barbatão,
Disse: -- Hoje eu vou botar
Mais um garrote no chão,
Sem saber que ia ser vítima
De uma horrenda traição.
                18
Isto no mês de novembro
Pela primeira chuvada,
Reuniu-se a vaqueirama
De frente a casa caiada,
Dizendo: -- Vamos olhar
Se a rama já está fechada.

Lucilane não sabia
Que era uma emboscada,
Saiu com a voz bonita
Aboiando uma toada,
E Carmelita ficando
Mais a mais apaixonada.

No ponto determinado
Um bandido foi dizendo:
-- Então moço Lucilane
O senhor está querendo,
Se casar com Carmelita?
Nós já estamos sabendo.

Lucilane disse: -- Ora
Quem manda ela ser boa!
Linda, cheirosa, atraente
Uma decente pessoa,
Brevemente Carmelita
Há de ser minha patroa.

Disse o bandido:-- Então pode
Tratar de se preparar,
Que depois da confissão
Nós vamos lhe comungar,
O patrão mandou a ordem
Que nós podia os casar.
                19
Nesta voz ele saltou
Nas garguelas de um bandido,
Pra começo destampou
O braço no pé do ouvido,
Saindo sangue das ventas
Caiu no chão estendido.

Os outros partiram em cima
Ele da faca puxou,
Danou no bucho de outro
Que o fato derrubou,
Feijão com bofe e lombriga
Tudo estruído ficou.

Partiu um sujeito feio
Cara cheia de chuvisco,
A faca entrou na sangria
Mais podre do que um cisco,
O sangue que derramou-se
Dava pra fazer chouriço.

Partiram quatro de frente
E mais dois de cada lado,
Disse Lane: -- Eu vou mostrar
Que sou um bicho estrompado,
Ou pensavam que eu servia
Só para derrubar gado!

Deu um salto ali de costas
Os cabras se destacaram,
Bateu de mão ao revólver
Os cabras também puxaram,
E os besouros sem asas
Nesta hora se assanharam.
                  20
Os cangaceiros atiravam
No moço pra derrubar,
Mas era difícil a bala
Por perto dele  passar,
Os poucos que Lane dava
Via o miolo voar.

Porém um  cabra mandou
Um besouro meio zangado,
Chicoteou numa pedra
Como quem vinha asilado,
Pegou no chapéu de couro
Deixou um rombo danado.

Vendo seu chapéu furado
O rapaz ficou com pena,
Aí se fez no revólver
Pior do que a gangrena,
Com dez minutos dez homens
Levaram a gota serena.

E cinco cabras correram
Deixando só o rapaz,
Disseram: -- Este só sendo
Parente de Ferrabráz,
Ou então veio do Inferno
Mandado por satanás.

Ali avançou seu cavalo
Como quem ia voando,
Mais ou menos dois quilômetros
Foi nos bandidos encostando,
E os cabras para trás
De vez em quando atirando.
               21
Ele também atirava
Porém faltou munição,
Dos cabras também faltou
Se danaram em direção,
Da fazenda e Lane disse:
-- Eu vou pegá-los de mão.

Os outros se adiantaram
Um pobre só se atrasou,
E Lucilane se encostando
Na sela se equilibrou,
De um cavalo para o outro
Na carreira ele pulou.

Na frente um gritou aos outros:
-- Olhem aquela arrumação,
O pobre do Chico Preto
Nunca mais come feijão,
Disseram: -- Vamos embora
Que aquilo só sendo o cão!

E chegaram na fazenda
De cabelo arrepiados,
Dizendo: -- Acuda patrão
Que negócio encalacrado,
Nunca fui um casamento
Dum noivo tão desastrado.

É doido quem quer negócio
Com aquela infernal serpente,
Já arrasou quinze homens
Quase acaba com a gente,
Pega boi, monta a cavalo
Depois o peste é valente!
                   22
Do cavalo ele pulou
Em cima do Chico Preto,
Ficou-o matando de arrocho
Deixando só o esqueleto,
O patrão tenha cuidado
Que a volta dele é espeto.

E a raiva dele é mais
Porque furei seu chapéu,
Dum tiro que lhe mandei
Vem pior que um tetéu,
E não tarda a chegar
No seu cavalo xexéu.

Parece que ali vem ele
Por dentro dos tabuleiros,
E o senhor se aguente
Aí com seus cangaceiros,
Que nós três vamos gramar
Por dentro dos marmeleiros.

O major disse: -- Danou-se!
Para o terreiro saiu,
E entrou de casa adentro
O chinelo escapuliu,
E o cinturão quebrou-se
E a calça também caiu.

O major disse aos cabras:
-- Eu me confio em vocês,
Pois quero que matem o cabra
Em paga do que ele fez,
Quando ele encostar no pátio
Façam fogo de uma vez.
                23
Carmelita já sabia
O que estava acontecendo,
Saiu em busca da sala
Neste momento foi vendo,
O seu pai com uma faca
Voltou pra dentro correndo.

A velha correu pra dentro
Disse: -- Daqui não me mexo,
Danou a venta na porta
Com um cachimbo no queixo,
Que a cabeça e o canudo
Atolou até o eixo.

Vendo os cabras entrincheirados
Lucilane desmontou,
No pátio da casa grande
Da cartucheira botou,
Seis balas no cano longo
Da casa se aproximou.

Surgindo o primeiro tiro
Entrincheirou-se ligeiro,
Numa pedra grande que havia
Mesmo no meio do terreiro,
Cada tiro que ele dava
Desgraçava um cangaceiro.

Carmelita vendo a hora
Seu querido se acabar,
Com um revólver na mão
Penetrou até chegar,
Onde estava Lucilane
E disse: -- Eu vim te ajudar.
                24
Lucilane vendo a moça
Ficou mais endiabrado,
E quando acertava um tiro
Beijava ela abraçado,
Dizia: -- Se nos matarem
Morro contigo agarrado.

Os outros disseram: -- O diabo
É quem fica aqui esperando,
Quem já matou mais de vinte
Nem está se incomodando,
A  gente tão apertado
Ele acolá se beijando.

Vendo o major, Lucilane
A Carmelita beijar,
Cresceu a ira deveras
Só faltou estuporar
Mas só via seus capangas
No mato abrir e fechar.

O velho ficando só
Lucilane da trincheira,
Sorrindo lhe perguntou:
-- Cadê sua cabroeira,
Porque o senhor também
Não embocou na madeira?

O velho vendo ele vir
Em direção apontou,
Mas quando fitou o moço
Um tremelique atacou,
Faltou a disposição
A arma no chão saltou.
               25
Disse o velho a Lucilane:
-- Meu genro pode ficar,
Com velha fazenda e tudo
Com a moça pode casar,
Dou até a minha mãe
Pra você não me matar.

Disse a velha: -- Tenha calma
Lucilane é bom rapaz,
E abraçou-se com ele
Beijando e dando cartaz,
Minha filha tem um marido
Parente de Ferrabraz.

Disse Lane: -- Mande ver
Logo o padre e muita gente,
Que antes das quatro horas
Quero voltar novamente,
Vou pegar o barbatão
Da fazenda da vertente.

-- Será que inda aguenta?
Perguntou o velho então,
Disse Lane: -- O senhor pensa
Que sou algum moleirão!
Disse o velho: -- Eu não estou
Mas dizendo nada, não.

E disse: -- Mande depressa
Trazer pra mim um chapéu,
E mande dar água e banho
No meu cavalo xexéu,
Que agora eu vou cantar
A vaquejada do céu.
             26
Depois seguiu pra vertente
Em busca do barbatão,
Que era assombro do povo
De todo aquele sertão,
E nunca vaqueiro algum
Se atreveu botar no chão.

E aboiando dizia:
-- Vida boa é de vaqueiro,
Casar com moça bonita
E filha de fazendeiro,
São as medalhas do campo
Que se dá pra boiadeiro.

O barbatão avistando
Embocou de mundo a fora,
Mas o cavalo xexéu
Avançou na mesma hora,
Disse Lane: Meladinho
Quero o bicho sem demora!

E emburacaram os três
Na rama da catingueira,
Quem longe passava ouvia
O estalar da madeira,
A terra estava molhada
Mas levantava poeira.

Subiram numa chapada
Cavalo, boi e vaqueiro,
Descambaram na quebrada
Por monte e despenhadeiro,
O moço lhe caqueava
Mas o bicho era ligeiro.
                 27
Na passagem dum grotilhão
O novilho fracassou,
E Lane pegou na cauda
E o cavalo avançou,
Nos três sopapos que deu
Foi três vezes que rolou.

E saltou com violência
E logo foi mascarando,
Dizendo: -- Vamos acolá
Que o povo está te esperando,
Botou o bicho na frente
Seguiu atrás aboiando.

E no aboio dizia:
--- Sou vaqueiro violento,
Pego o touro pela cauda
Derrubo com meu talento,
E amanhã com Carmelita
Eu me uno em casamento.

Às oito horas da noite
O povo todo no terreiro,
Disse a moça: --Estou ouvindo
O aboio do vaqueiro,
Disseram: --Ele é apaixonado
Aboia com desespero.

Nisso o vaqueiro chegou
Foi novamente abraçado,
E mataram o barbatão
Para a festa do noivado,
Pra Lucilane chegava
Homenagem de todo lado.
                28
Disse o velho a Lucilane:
--- Já que você é poeta,
Portanto em aboio eu quero
Ouvir sua história completa,
Em aboio que regozije
Até alma de profeta.

A velha disse ao povo:
-- Agora vamos escutar,
A história do vaqueiro
Pra nossa festa animar,
Pois a coisa mais bonita
É Lucilane aboiar.

Nesta hora a multidão
Fez um silêncio profundo,
Para ouvir Lucilane
Vaqueiro melhor do mundo
E a Vaquejada do Céu
Ele rompeu num segundo:

-- Quando no mês de Novembro
Pela primeira chuvada,
Se reúne a vaqueirama
De frente a casa caiada,
Vão olhar o campo vasto
Se a rama está fechada.

-- O vaqueiro da fazenda
É quem se monta primeiro,
No seu cavalo amarelo
Calçado e muito ligeiro,
Sai aboiando e pensando
Na vida do fazendeiro.
                 29
--- Do vaqueiro Lucilane
Ninguém não lhe toma a frente
Porque o cavalo é bravo
E o boiadeiro é valente
E da mão de Carmelita
Ele é o pretendente.

--- O vaqueiro lá na mata
Se rola em cima da sela,
Se desviando de espinhos
Umas de gato e favela,
Fazendo versos e pensando
Na beleza da donzela.

--- Assim o vaqueiro aboia
Êh pra lá vaca bonita,
No lugar do teu chocalho
Um belo laço de fita,
És a beleza do campo
O mimo de Carmelita.

--- Na pega do barbatão
O vaqueiro violento,
Pega na cauda do touro
Derruba com seu talento,
E o fazendeiro lhe dar
Carmelita em casamento.

--Pois eu mostrei para o mundo
Quanto vale um bom vaqueiro,
Casa com moça bonita
Filha de um fazendeiro,
São as medalhas do campo
Que se dá pra boiadeiro.
               30
-- Quando o vaqueiro adoece
Bota seus couros na cama,
O gado no mato urra
Como a voz de quem lhe chama,
Na porteira do curral
Berra toda bezerrama.

-- Só peço quando eu morrer
Que botem no meu caixão
Os meus trajes de vaqueiro
Chapéu de couro e gibão
Pra eu brincar com São Pedro
Nas festas de apartação.

--Não se esqueçam de botar
As esporas e o chapéu,
O retrato do meu cavalo
Que sempre chamei xexéu,
Pra eu brincar com São Pedro
Nas vaquejadas do Céu.

-- Quero minha sepultura
Lá no meio do tabuleiro,
Em cima da minha cova
Coloque um belo cruzeiro,
Com alguns sinais de couro
Provando ser dum vaqueiro.

--E quando o gado solteiro
A noite fizer malhada,
Lá no pé do meu cruzeiro
De frente a casa caiada,
Urra o gado em minha cova
Chora o povo na morada.
              31
--Termino me despedindo
Dos meus amigos vaqueiros,
Dos grutilhões das chapadas
Dos montes, despenhadeiros,
Deixando um aboio saudoso
P`ras filhas dos fazendeiros.

Quando Lane terminou
Todas as moças choravam,
E os amigos vaqueiros
Com os lenços acenavam,
E as reses no curral
Pelo vaqueiro urravam.

E disse pra Carmelita:
--Já findei minha aventura,
E agora vamos seguir
Pra nossa vida futura,             32
Presente passado é claro
Mais nossa frente é escura.

Lucilane foi artista
Com seu cavalo xexéu,
Carmelita sua amada
Também cobriu-se  de véu,
E foi daqui que surgiu
A vaquejada no céu.

Aqui meus caros leitores
Meu romance terminou,
Um beijo de Carmelita
Desejo pra quem comprou,
Pra quem não comprou desejo
Que de noite leve um beijo
Dos cabras que ele matou – FIM
         



José Edimar
A VIDA DO CANTADOR
REPENTISTA DO NORDESTE

No nordeste do Brasil
Existe o grande celeiro,
Do cantador repentista
Que é hoje no mundo inteiro,
Conhecido e ninguém sabe
Da vida dum violeiro.

Que o poeta violeiro
Quando nasce repentista,
Pra cantar de improviso
Como verdadeiro artista,
Torna-se filho do mundo
Com liberdade e conquista.

Faz do verso o canto livre
Que na sua arte brilha,
Da viola a melhor arma
A mente a própria cartilha,
O sonho vira seu mundo
A plateia a sua família.
                01
Devido gostar da arte
Da família é desprezado,
Andando de mundo a fora
Da viola, acompanhado,
Tem respeito pelas ruas
Em casa é desrespeitado.

O Poeta cantador
A família não aceita,
Somente o apologista
Que na arte lhe ajeita,
Em casa nem sua viola
Esposa e filho respeita.

Do labor da sua viola
A família é sustentada,
Responde pelas despesas
Mantendo toda parada,
A viola e o cantador
Pra família não é nada.

Quando chega duma viagem
Onde ganhou muito bem,
A família lhe recebe
Com o dinheiro que tem
Depois permanece em casa
Mas como não ser ninguém.
             02
Sente a maior alegria
Se um filho é cantador,
Pra seguir na mesma arte
Onde sente tanto amor,
Sendo assim recompensado
Por ser tão merecedor.

Já conheci cantador
Que depois duma viagem,
Deixa em casa todo soldo
Sem guardar nem a bagagem,
Dormir na chuva e morrer
Sem ninguém vê sua passagem..

Por isso tomei coragem
Para escrever esses versos,
Sobre o nosso violeiro
Que por caminhos diversos,
Faz do universo seu
Porta a outros universos.

Cantando sobre perversos
E dos casos amorosos,
Também dos corações duros
Dos espíritos caridosos,
Dos puros e verdadeiros,
Enganadores mentirosos.
                   03
Com versos miraculosos
Cantando alegrando vidas,
Por fazendas e lugarejos
Cidades e avenidas,
Apontando as entradas
E mostrando as saídas.

Na vida familiar
Não tem dia especial,
São João, dia dos pais
Ano novo ou Natal,
Nem fala em semana santa
Muito menos, carnaval.

Muitos deles não viajam
Ficando na região,
Assumem o labor de casa
Trabalhando feito o cão,
Não larga porque precisa
Viver dessa profissão.

Muitos amam a sua viola
Sem ter reconhecimento,
Arranja logo um emprego
Para manter no sustento,
Fica ela em segundo plano
Quase no esquecimento.
                 04
O cantador do passado
Foi chamado preguiçoso,
Malandro aproveitador
Sujeito desrespeitoso,
Namorador sem caráter
Macho vadio e manhoso.

Até a própria polícia
Quando na rua encontrava
Um poeta cantador
Para a prisão o levava
Cadeia por vadiagem
Cantador sempre pegava.

Porém tem o cantador
Que traz baixa qualidade
Não falo do conteúdo
Que lhe dar capacidade
Refiro-me a sua conduta
Quanto à responsabilidade.

Tem cantador sem respeito
No local da cantoria,
Alguns fugiram da festa
Deixa a cadeira vazia,
Para não morrer na peia
Até amanhecer o dia.
                05
Mas em toda classe existe
Tudo que ninguém deseja,
Cantador que é colega
Companheiro na peleja,
Mas tem os que tendo chance
Rouba até o da bandeja.

Digo assim para mostrar
Que tem bom e tem ruim,
Teve Abel, Set e Enoque
Porém não faltou Caim,
Essa é a realidade
Em todo canto é assim.

A maior dificuldade
Do cantador do passado,
Sobreviver na profissão
Abandonando o roçado
Era cantar e poder
Com ela ser sustentado.

Também as grandes distâncias
Sem achar onde cantar
Sair sem tomar café
E ficar sem almoçar
Muitas vezes até dormir
Sem ter nada pra jantar.
                06
Ainda assim ser feliz
Mesmo nas dificuldades,
Cantar dor e alegrias
Falar de amor e saudades,
Fazer chorar de emoção
E rir de felicidades.

Mas o cantador não gosta
Exercendo a profissão,
Ter pedido em cantoria
De quebrar inspiração,
Concluir e receber
Menos que o valor dum pão.

Também não fica feliz
Quando canta sem plateia,
Perde logo a inspiração
Foge da mente a ideia,
Até veterano sofre
Muito mais quem faz estreia.

Porém quase ninguém ver
Cantador andar zangado,
Noventa por cento deles
Nunca foi mal-humorado,
Exceto os na profissão
Que vem cantado forçado.
                  07
Tem pessoas já zangadas
Em sua própria natureza,
Dessas ninguém está livre
É uma grande certeza,
Mas é pequena a parcela
A maioria é grandeza.

Mazelas de cantadores
Não são bases das raízes,
Um ser dotado por Deus
Vem trazendo diretrizes,
Pra sentir felicidades
Fazer pessoas felizes.

Por isso estou escrevendo
Para falar desse astro,
O cantador repentista
Que tem viola por mastro,
Tem raízes no sertão
Ninguém apaga seu rastro.

Deus abençoe os Poetas
Dessa nossa profissão,
Com mais festas culturais
Aumento em população,
Com muito mais cantorias
Na cidade e no sertão. FIM
               08


A TRISTE SORTE
DE UMA MERETRIZ
João Martins de Athayde

Não se engane com o mundo
Que o mundo não tem que dar,
Quem com ele se iludir
Iludido há de ficar,
Pois temos visto exemplo
Que é feliz quem os tomar.

Doze anos tinha Aulina
O seu pai era fazendeiro,
Casa que naquele tempo
Havia tanto dinheiro,
Muitas joias de valor
E crédito no mundo inteiro.

Aulina eu creio não tinha
Outra igual na perfeição,
Parece que a natureza
Carregou mais nela a mão,
Pois nela via se a força
Do autor da criação.

Os olhos dela fingiam
Raios do sol da manhã,
O rosto bem regular
Corada como romã,
Parecia que as estrelas
Queriam chama-la irmã.

Os dedos alvos e finos
Qual  teclados de piano,
Quem a visse só diria
Que não era corpo humano,
Parecia ser propósito
Do divino Soberano.
            01
Porém tinha tanto orgulho
Que nem os  pais conhecia,
Se  julgava saliente
A todo mundo que via,
Julgando que todo mundo
A ela se curvaria.

Quando inteirou vinte anos
Por si se prostituiu,
O pai quase que enlouquece
Com o desgosto que sentiu,
Porque em toda família
Um caso assim nunca viu.

Logo que caiu no mundo
Por todos foi abraçada,
Por as mais altas pessoas
Era sempre visitada,
Por fidalgos e militares
Por todos era adorada.

Recebeu logo um presente
Dum palacete importante,
Com uma mobília sublime
Dada pelo seu amante,
A obra de mais estima
A quem se acha elegante.

Para a sala de visita
Comprou um rico piano,
Quatro consolos de mármore
Um aparador de ébano,
Uma cômoda muito rica
Que só a de um soberano.
                02
Ricas cadeiras modernas
Candeeiros importantes,
Jarros de fino cristal
Espelhos muito elegantes,
O retrato dela num quadro
Com quatro ou cinco brilhantes.

Um grande damasco verde
A sala toda cobria,
Toalhas bordada a ouro
Em qualquer quarto se via,
Era só de porcelana
Toda louça que existia.

Nem é preciso falar
No quarto que ela dormia,
Porque já se viu nas salas
A riqueza que existia,
Agora na cama dela
Faça ideia no que havia.

Durante cinco ou seis anos
A vida dela era assim,
A casa era um céu de estrelas
Rodeada de marfim,
Vivia ela como vive
Um beija flor no jardim.

Adoeceu de repente
E não cuidou em tratar-se,
Julgando que dos amantes
Nenhum a desamparasse,
Devido a sua influencia
Qualquer um amparasse.
               03
Foi contrário o seu cálculo
A si só chegaram dores,
Foi perdendo a influência
Multiplicando os clamores,
Não foi mais a sua casa
Nenhum dos adoradores.

Pegou logo a empenhar
As joias que possuía,
Por menos de seu valor
Diversas  coisas vendia,
A moléstia no seu auge
Crescendo dia após dia.

No período de dois anos
Gastou o que possuía,
Pegou logo pelas joias
De mais valor que existia,
Sofás, cadeiras e consoles
Vendeu tudo em um só dia.

Os quadros os aparadores
Piano, relógio espelhos,
Vendeu-os para curar
Duas fístulas nos joelhos,
Já desejava encontrar
Quem lhe desse uns conselhos.

Afinal vendeu a casa
E a cama onde dormia,
Era o único objeto
Que em seu poder existia,
Ainda um amante vendo
Jamais a conheceria.
             04
Meu Deus! Exclama ela
É infeliz o meu futuro,
Nasci em berço dourado
Para morrer no monturo,
Quanta diferença existe
Da seda para o chão duro.

Quantos lordes em meus braços
Se esqueciam dos seus cargos,
Me adorava como santa
Me mostrando mil afagos,
Hoje não vejo ninguém
Nestes dias tão amargos.

Cadê os grandes militares
Que não podiam passar,
Três dias numa semana
Sem virem me visitar,
E faziam de mim santa
De meu divã um altar.

Nada disso existe mais
Tudo já se dissipou,
As promessas e os presentes
O vento veio e levou,
Em paga de tudo isso
Na miséria me deixou.

Essas dores que hoje sofro
É justo que sofra elas,
Essas lágrimas que derramo
Serão em paga daquelas,
Que fiz gotejar dos olhos
Das casadas e das donzelas.
                  05
Sinto dores com excesso
Ouço a voz da consciência,
Me dizer: -- Filha maldita
Tua desobediência,
Clamará perante Deus
E pedirá providência.

Ela em soluço exclamava
Meu Deus! tende compaixão,
Negue-me tudo na vida
Mas me alcançai o perdão,
Santíssima Virgem rogai
Pela minha salvação.

Que cobertores tão caro
Já forraram o meu colchão,
Que cortinados de seda
De causar admiração,
Hoje não tenho uma estopa
Que forre aqui esse chão.

Ricos vestidos de seda
Lancei muitos no monturo,
Saias ainda em estado
Camisas de linho puro,
Não pensava na desgraça
Que vinha para o futuro.

Minha mesa nesse tempo
Tinha de tudo que havia,
Só mesa de um personagem
De alta categoria,
Hoje o resto de uma sopa
Quando agora me servia.
                06
Peço esmola a quem passa
Esse nem me dar ouvido,
Quem outrora me admirava
Não ouve mais meu gemido,
Passa por mim torce a cara
Se finge desconhecido.

Eu era como uma flor
Ao despontar da manhã,
Representava a aurora
Aquela deusa louçã,
Meu amantes perguntavam
Se a lua era minha irmã.

As majestades chegavam
Antes da celebração,
Humildes como um escravo
Me faziam saudação,
Como se a render-me culto
Seria uma obrigação.

O exército e o comércio
A arte e agricultura,
Todos me ofereciam
Seu afeto de ternura,
Tudo vinha admirar
Minha grande formosura.

Mas eu vivia enganada
Com estas tristes carícias,
Eu bem podia saber
Que o mundo não tem delicias,
É um gozo provisório
E um cofre de malicias
              07
Donzelas eis o exemplo
Para todos que estão vendo,
Não me viram há poucos dias
Como o sol que vem nascendo,
Já estou aqui no chão
Os tapurús me comendo.

Ah meu pai se tu me visse
Nessa miséria prostrada,
Embora que vossa face
Foi por mim injuriada,
Talvez que ainda dissesse
Deus te perdoe desgraçada.

Ah minha mãe carinhosa
Se agora eu te abraçasse,
Inda com essa agonia
Talvez que me consolasse,
E antes de partir do mundo
Essa sede saciasse.

Sinto o soluço da morte
Já é hora de partir,
Peço ao meu anjo da guarda
Para comigo assistir,
Porque temo que o demônio
Não venha me perseguir.

Uma velha caridosa
Trouxe água ela bebeu,
Matou a sede que tinha
Graças a Jesus rendeu,
Erguendo os olhos ao céu
Nesse momento morreu.  FIM
              08
 



 

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