domingo, 8 de abril de 2012

CEGO ADERALDO E DOMINGOS DA FONSECA


Nome Artístico: Cego Aderaldo
Nome de Batismo: Aderaldo Ferreira de Araújo
Instrumento: Rabeca (Viola)
Nascimento: Crato, 24 de Junho de 1878
Falecimento: Fortaleza, 29 de Junho de 1967


        AUTO BIOGRAFIA
 Eu venho de muito longe, desde o dia 24 de junho de 1878. Sou filho da cidade do Crato, onde nasci em modesta casa da Rua da Pedra Lavrada, atualmente Rua da Vala. Meu pai, Joaquim Rufino de Araújo, era alfaiate. Minha mãe, Maria Olímpia de Araújo, era de prendas domésticas, como devem ser todas as mulheres. Meu sofrimento, na vida, vem também de muito longe.
Quando eu tinha pouco mais de dois anos, perdi meu pai. Lá ouviram falar em homem que tem ataque de congestão? Aquele velho e honrado alfaiate, que largara Crato para viver em Quixadá, aonde viera buscar fortuna, fora agarrado pela desgraça. Que pode fazer um alfaiate mudo, surdo e aleijado? Desde esse momento a necessidade entrou em nossa casa. Entrou e se abancou. Eu, com idade de cinco anos, tive que trabalhar na casa do Sr. Miguel Clementino de Queiroz. .. E era com esse dinheiro que eu podia sustentar meu pai.
Tentei tudo na vida; queria virar logo homem, ganhar mais dinheiro para poder socorrer minha família. Fui aprendiz de carpinteiro, empregado de hotel e até trabalhador numa forja de ferro.
Era uma oficina modesta, e seu proprietário, mestre Antônio Henrique, ali me acolheu com simpatia, ensinando-me os rudimentos de mecânica. Mas, quando tudo parecia melhor encaminhado para mim, meu irmão mais novo – ah, o mano Raimundo, de treze anos de idade! – adoeceu. Doença de matar. A medicina daquele tempo não teve força para ampará-lo... Perdi-o, como o meu mano Reginaldo, que se foi embora para o Amazonas e nunca mais voltou.
Fiquei sozinho com todos os encargos da família. E como pesavam! Como sofria meu pai, surdo, mudo e aleijado. Quantas e quantas vezes não ouvi mamãe chorar! Como doía aquele choro, na madrugada.
Quando aí tinha dezoito anos, meu pai morreu. Morte macia. Veio chegando devagarzinho até levar o melhor alfaiate e o melhor pai que conheci. Passamento deu-se a 10 de março de 1896 e no dia 25, do mesmo mês, aconteceu a desgraça que me tirou a luz do mundo. Como é que se conta a história de um moço que ficou cego porque tomou um copo d'agua? Que mal pode fazer um copo d'agua? Por que eu haveria de cegar por isso apenas? Eu havia pedido água para beber, na casa defronte á nossa.
Quando devolvia o copo com um "muito obrigado", senti aquela dor horrível, um arrocho querendo sair da minha cabeça. Meus olhos ficaram logo turvos. Apertavam-se, doíam, como se estivessem cheios de espinhos de cacto. - Meu Deus! – foi o que pude dizer. Até aí, ainda enxergava. Eu podia ver o mundo, as coisas. Sabia o que era uma manhã de sol, um dia de chuva, o chegar da noite... Mas depois disso, aí meu Deus! Meus olhos se fecharam para sempre.
Fiquei completamente cego. E aquela coisa morna, que pingou na minha mão, repetidas vezes, me disseram depois que era sangue. O sangue que descera de meus olhos estalados pelo destino.
É impossível descrever a vida de um cego dentro de casa, isolado do mundo, sabendo que perdeu para sempre o colorido das paisagens. Mas de tudo, o pior foi quando senti que devia sair á rua para pedir auxílio a um e a outro. Não! dizia comigo mesmo, um homem não deve pedir esmolas! Principalmente moço como eu... Ninguém aparecia em nossa casa. Era receio de que lhe fosse pedir ajuda. Cego, e pobre, achei-me quase faminto. Não digo só, porque minha mãe estava comigo. Eu implorava ao Nosso Senhor Jesus Cristo, São Francisco de Canindé... Queria um caminho, uma vereda que me levasse a um abrigo seguro! Uma noite sonhei cantando:


Oh! Santo de Canindé!
Que Deus te deu cinco chagas,
Fazei com que este povo
Para mim faça as pagas;
Uma sucedendo ás outras
Como o mar soltando vagas!


Acordei. Que fora aquilo? Como pudera decorar, fixar na mente aquela estrofe? Imaginei então que, naquela, estava a mão poderosa de Deus, a dizer-me que meu destino era cantar. Uma mocinha me ouviu narrar este sonho, deu me de presente um cavaquinho. Foi nas cordas desse cavaquinho que eu comecei a experimentar o meu então pobre talento de cantador:


Ah! Se o passado voltasse,
Todo cheio de ternura.
Eu ainda tinha vista,
Saía da vida escura...
Como o passado não volta
Aumenta minha tristeza:
Só conheço o abandono
Necessidade e pobreza.


Minha mãe, que me ouvia sempre, encantada, dizia-me: - Canta, filho... Um dia o pessoal te compreenderá! Entusiasmo de mãe, eu bem sabia. Mas o importante era aprender. Um homem que canta sabe se impor e assim eu pensava. E tinha certeza que um dia me libertaria das minhas trevas, tangendo as cordas de uma viola...
Saí pela redondeza, me oferecendo: - Querem que o ceguinho cante? Alguns diziam:
- Experimente... Se agradar... Eu sempre agradava. Ia recebendo então, em paga, milho, feijão, arroz, farinha, e até carne de bode. Quando enchia um saco de pano destas coisas que ganhava, voltava á nossa casa. Minha querida mãezinha exultava de satisfação: - Não lhe dizia, filho! Um dia... Não perca a esperança.
Um dia, que dia horrível! Eu tinha conseguido mais prendas. Vinha carregado de coisas; trazia até um carneiro, que recebera de presente. Tudo, graças ao meu canto, a tudo aquilo que eu improvisei, divertindo o povo. Mas nesse dia, a minha mãe morreu.
Agora estava só no mundo. Só é triste. E assim eu saí dali e comecei uma nova existência. Saí pelo mundo a cantar. Os meus pés pisaram a poeira de muitos caminhos! Percorri todas as serras, alcancei os chapadões, varei a caatinga, entrei no brejo... Por toda parte eu levava a minha voz, assim como um soldado leva a bandeira do seu batalhão, cumprindo um roteiro de cantorias. Aqui escrevo, e juro que é verdade.



  AUTO BIOGRAFIA 
















Nome Artístico: Domingos da Fonseca
Nome de Batismo: Domingos Martins da Fonseca
Filiação: Diogo Martins da Fonseca e Agostinha Martins da Fonseca
Instrumento: Poeta, Violeiro e Repentista
Associação dos Cantadores do Nordeste: Fundador
Nascimento: Miguel Alves - PI, 12 de Junho de 1913
Falecimento:  Dia 28 Abril de 1958 em Fortaleza - CE.

      

    Domingos Martins da Fonseca nasceu a 12 de junho de 1913, no distrito de Santa Luzia, município Miguel Alves, Piauí, onde fez o curso primário. Poeta, violeiro e repentista.
Aos 10 anos de idade já cantava e improvisava.
Poeta popular de renome, considerado o maior repentista do Piauí e maior cantador lírico, ao som da viola. Foi cognominado o "armazém do improviso".
     Ainda cedo deixou a sua terra e foi morar em Teresina. Com a sua inseparável companheira, a viola, viajou pelas as asas do repente. Chegou em Fortaleza/CE e de lá até Recife/PE, onde participou do I Congresso de Violeiros. Obteve a primeira glória da sua carreira, pelejando com o respeitado repentista Dimas Batista. De lá voou para o sudeste do país, tal qual um passarinho em busca de um novo ninho. No sudeste cantou na rádio Nacional do Rio de Janeiro, no Programa do Almirante “Recolhendo Folclore. Em São Paulo se fez ouvir na rádio Bandeirantes.
     Viajou pelo Brasil fazendo campanha em favor da valorização da profissão do violeiro, notadamente Recife, os Estados do Nordeste todo e São Paulo.
Tomou parte no Congresso de Cantadores em Recife, Pernambuco, realizado no Teatro Santa Isabel, batendo-se brilhantemente com o pernambucano Dimas Batista Patriota, na noite de 5 de outubro de 1948. Os dois aplaudidos de pé, pela assistência, classificados na auréola do empate.
Pioneiro da fundação da Associação dos Cantadores do Nordeste.
Publicou "Poemas e Canções", Bahia, 1956, com distribuição em benefício da Associação dos Cantadores do Nordeste.
     Domingos da Fonseca declamou a saudade da sua terra amada, mas também transformou em versos a mágoa que afugentava o seu peito, dedilhando a sua viola plangente. Deixou o livro “Poemas e Canções” publicado em 1956.
     Mesmo depois de ter sido reconhecido e aplaudido por onde passou, Domingos Fonseca viveu momentos de agonia até os seus últimos dias. Faleceu em Fortaleza,  no mais completo estado de miséria.

 
Cego Aderaldo cantando com Domingos Fonseca

 
 (Sextilhas)

Cego Aderaldo

Ó doce luz dos meus olhos
Coração e a lembrança
Tudo quanto eu procuro
Eu vejo perseverança
Meu peito vive cansado
Porém não sente mudança

Domingos Fonseca

Eu desde muito criança
Que procurei me manter
Vivendo da cantoria
Para vestir e comer
Já que ser grande poeta
Lutei, mas não pude ser

Cego Aderaldo

Jesus a mim quis fazê
Neste caso que se deu:
Eu perdê a minha vista
Meus olhos escureceu
Mas estou cantando as virtudes
Que a natureza me deu

Domingos Fonseca

Jesus me favoreceu
Com a pequena viola
Me deu a inteligência
Que ao verso desenrola
Eu acho que ele deu-me
Uma preciosa esmola

Cego Aderaldo

Deus a mim, deu a bola
Para levar a cantoria
Tirou a luz dos meus olhos
Eu não vejo a luz do dia
Porém eu levo a palavra
Transcrita em poesia

Domingos Fonseca

Jesus prometeu-me um dia
E eu fiquei disto ciente
Eu havia de ser pobre
De viver sempre doente
Porém me deu por consolo
A cantoria repente

Cego Aderaldo

Eu não vivo indiferente
Aqui no Rio de Janeiro
Vivo muito consolado
Meu canto são verdadeiro
Embora que nesta terra
Não tenho ganhado dinheiro

Domingos Fonseca

Eu sei que o Rio de Janeiro
É uma cidade interessante
Mas eu sempre me recordo
Do velho sertão distante
Tanto que da minha terra
Não esqueço um só instante

Cego Aderaldo

Levo a minha vida avante
Na terra misteriosa
Nesta cidade tão linda
De pessoas tão garbosa
Lugar aonde se vive
A terra cheia de rosa

Domingos Fonseca

De fato é muito formosa
Não há quem diga que não
Parece um pedaço do céu
Estendido sobre o chão
Mas não se acaba a vontade
De eu voltar pra o meu sertão

Cego Aderaldo

Eu sinto no coração
Aqui uma grande alegria
Porém eu não vejo o mundo
Perdi toda a simpatia
Ah, se eu pudesse ver
A estátua de Caxias

Domingos Fonseca

Teve grande garantia
Aquele homem aliás
Em reverência ao seu nome
Todo mundo ainda faz
O nome dele na história
Não se apaga nunca mais

Cego Aderaldo cantando com Domingos Fonseca

(Oito a quadrão)

Domingos Fonseca

Aderaldo eu vou na frente
Cantando conveniente
Vou traduzindo o repente
Que alguém dê atenção
Eu estou de prontidão
Junto com meu companheiro
Fazendo verso ligeiro
Eu oiço verso em quadrão


Cego Aderaldo

Eu cheguei nesse lugar
Mas aqui não é meu lar
Outras terra e outros mar
Outro céu e outro sertão
Vou falar de prontidão
Não é um cantar bem dito
Porem meu verso é bonito
Em quadrado, quadro, quadrão


Domingos Fonseca

Cheguei ao Rio de Janeiro
Junto com meu companheiro
De fato ganhei dinheiro
Mas já estou em percisão
Porém nesta ocasião
Dona Dulce nos convidou
E nossa sorte melhorou
Cantando oitavo em quadrão


Cego Aderaldo

Vou preparar o quadrado
E vou arrumar o esquadro
Para ver se faço quadro
Preparar a quadração
Ver as quadras como são
Depois do quadro bem feito
Canto muito satisfeito
O quadrado, quadro, quadrão


Domingos Fonseca

Eu dou a bala ao meu peito
Quadrando do mesmo jeito
Para ficar satisfeito
Quadro o dedo e quadro a mão
Quadro o café, quadro o pão
Quadro o pão, quadro o café
Quadro a igreja, quadro a fé
E termino tudo em quadrão


Cego Aderaldo

Pra fazê um oitavado
Pra ao depois ficá quadrado
Pra ficá sextivado
Vou fazê a quadração
Mostro os quadro como são
Tudo riscado ao compasso
Tendo lá um pé de aço
Em quadrado, quadro, quadrão


Domingos Fonseca

Quadro a fôrma, quadro o queijo
Quadro a boca, quadro o beijo
A vontade e o desejo
O gozo e a satisfação
Aqui tenho o coração
O coração e a vida
Quadro a praça e a avenida
E termino tudo em quadrão


Cego Aderaldo

Ó meu Deus, que cousa boa
Não levo a conversa à toa
Minha palavra revoa
Pela força de um pulmão
Não me dói o coração
E não é uma cousa louca
Sai o meu verso da boca
Em quadrado, quadro, quadrão


Domingos Fonseca

Eu não quero me gabar
Desejo apenas cantar
Agora é pra terminar
Que o moço acenou a mão
Eu olhei pra posição
Vou terminar meu repente
Sim, senhor, já estou ciente
Vou terminar meu quadrão.


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