quinta-feira, 22 de novembro de 2012

INÁCIO DA CATINGUEIRA E ROMANO DA MÃE D` ÁGUA


Inácio da Catingueira,  escravo do fazendeiro Manuel Luiz, foi cantador lendário e citado orgulhosamente por todos os improvisadores do sertão. Seus dotes de espírito, a rapidez fulminante das respostas, a graças dos remoques, a fertilidade dos recursos poéticos, a espantosa resistência vocal, ficaram celebrados perpetuamente. Sendo negro e analfabeto não trepidou enfrentar os maiores cantadores do seu tempo, debatendo-se heroicamente e vencendo quase todos. Foi o único homem que conseguiu derrubar o mais famoso repentista da época, Romano da Mãe D’Água, depois de cantarem juntos oito dias em Patos, luta que é a página mais falada nos anais da cantoria sertaneja. 
Sem sobrenome por ser filho de pai desconhecido, o maior fenômeno da cultura popular de Catingueira, nasceu aos 31 de julho, dia em que a igreja homenageia o Santo Inácio de Loiola, do ano de 1845. Sua Mãe, uma negra africana de nome Catarina, só foi batizada em 1902, pelo Bispo Dom Adauto, época em que já contava 118 anos de idade. Seu genitor, segundo alguns indicativos, era um homem branco, residente na região. Por esse motivo, há quem discorde das informações de que Inácio da Catingueira era puramente negro e sim mestiço, de cor escura mas de pele fina, cabelos corridos, conservando um pequeno cavanhaque e um bigodinho acanhado. Afirmam, que era simpático, de estatura satisfatória, olhos pretos e dispondo de uma voz forte e agradável. Seu instrumento era um pandeiro, que até hoje prevalece nas emboladas de coco, enfeitado com um laço de fita, guizos de prata de dois mil réis e tampo de couro cru, retinindo a cadência de seus versos quentes e empolgantes.
 
 Nas pesquisas e informações que obtivemos através de Gervásio da Silva, de Saloá, Pernambuco, se desencontram apenas a idade de Inácio. Umas fontes

O nome em destaque nasceu no Sítio Marrecas, como escravo de Manoel Luiz de Abreu mas, também, foi cativo por herança de Francisco Fidié Rodrigues de Sousa, genro do mesmo. No inventário, Inácio da Catingueira, constou como bem, em valor de valor de 1.200$000 (um conto e duzentos mil réis). Tal partilha foi procedida na residência do senhor Nicolau Lopes da Silva, filho da viúva Ana Joaquina da Silva, em 13 de fevereiro de 1875, oportunidade em que Inácio da Catingueira já contava 30 anos de idade e era considerado um imenso bem humano. No dia 22 de março, em seguida à partilha, o inventário foi homologado pelo Juiz, Dr. João Tavares de Melo Cavalcante Filho. O Histórico documento encerrou-se com distribuição das custas aos serventuários da justiça, em 21 de abril do mesmo ano.

Inácio da Catingueira, que analfabeto, teve como grande trunfo para conseguir a liberdade, o talento poético, com o qual sensibilizou o seu senhor. Não chegava a ser impedido de se ausentar da morada para qualquer viagem, por mais que demorasse e, ainda por cima, era dono de tudo o que conseguia como humildade artista.

 O acontecimento que o tornou conhecido é tido também, como a maior peleja entre dois repentistas já ocorrida no Nordeste. O desafiante seria outro poeta, não escravo e já afamado, conhecido por Romano da Mãe D água, e tal embate se daria na cidade de Patos. A primeira vez que Inácio se deparou com aquele que seria um parceiro por muito tempo, foi registrada na casa de Firmino Aires, oportunidade em que se fazia acompanhar de um grupo proveniente de sua terra. O objetivo era apenas conhecer o homem tido como grande mestre. Levado para a presença do Rei dos Repentes, empunhando o seu pandeiro, Inácio foi desafiado por este, e o célebre desafio entre os dois cantadores e que sagrou Inácio o campeão inconteste, durou oito dias, garantindo público, em praça pública de Patos, nas redondezas da tradicional feira, proximidades da Igreja da Conceição. A partir daí, ficaram companheiros e, por onde passava a dupla, arregimentava verdadeiras multidões. 
 empunhando o seu pandeiro, o negro saiu -se com essa:

Senhores que aqui estão
Me tirem de um engano
Me apontem com o dedo
Quem é Francisco Romano
Pois eu ando no seu piso
Já não sei a quantos anos
Surpreendido,

Romano devolveu-lhe o seguinte verso:

Senhor me diga o seu nome
Que eu quero ser sabedor
Se é solteiro ou casado
Aonde é morador
Se acaso for cativo,
diga quem é seu senhor

Sem qualquer rodeio Inácio finalizou:

Seu Romano eu sou cativo
Do senhor Mane Luiz
Sou solteiro, de palavra
Que só sustenta o que diz
Inácio da Catingueira
Sou um escravo feliz.

O célebre desafio entre os dois cantadores e que sagrou Inácio o campeão inconteste, durou oito dias, garantindo público, em Praça Pública de Patos, nas redondezas da tradicional feira, proximidades da Igreja da Conceição. A partir daí, por onde passava a dupla arregimentava verdadeiras multidões.

Em vida já manifestava o temor da certeza de que um dia deixaria a sua terra querida, a dedicou quase todos os temas dos seus improvisos, antecipando o espírito saudoso, em versos como este:

Tenho pena de deixar
A Serra da Catingueira
A Fazenda Bela Vista
A maior dessa ribeira
O Riacho do Poção,
As quebradas do Teixeira.

São lições como esta que conseguem ampliar, cada vez mais, a genialidade de Catingueira, mostrando que é a humildade a maior das virtudes. Passaram-se quase 123 anos da morte do fenômeno e a poeira do tempo não conseguiu sequer embaçar, na memória do povo, a lembrança de Inácio, sempre atrelada ao nome de sua terra. Foi um grande exemplo que resistiu a todas as intempéries para mostrar que a grandiosidade não está contida no que se tem, mas naquilo que se consegue como conquista do esforço próprio. Pitadas de sofrimento, determinação e coragem, como ingredientes da maior culinária humana
trazidas por ele.

Dizem que Inácio morreu com mais de 60 anos, vitimado por pneumonia; e outras dizem que ele, vitimado pela mesma doença, haveria morrido com pouco mais trazidas por ele, de 30 anos. Pelo sim, pelo não, resolvemos manter as duas datas. 
Em conseqüência de trabalhos no campo, época da queima de brocas, com pouco de trinta e três anos de idade. Seu corpo não foi sepultado na Fazenda, como de praxe faziam com os escravos. Repousa em uma Praça, no centro da cidade, a qual leva o seu nome, tendo, inclusive, uma estátua em sua homenagem.


Inácio inicia com o primeiro verso 
e Romano continua co o segundo


Me tirem de um engano: 
Me apontem com o dedo 
Quem é Francisco Romano, 
Pois eu ando no seu piso
Já não sei há quantos anos. 
Negro, me diga o seu nome 
Que eu quero ser sabedor, 
Se é solteiro ou casado, 
Aonde é morador, 
Se acaso for cativo, 
Diga quem é seu senhor. 
Eu sou muito conhecido, 
Aqui nesta ribeira, 
Este é o seu criado 
da Catingueira. 
Dentro da Vila de Patos, 
Compro, vendo e faço feira. 
Negro, vieste a Patos 
Procurando quem te forre 
Volta pra trás, meu negrinho 
Que aqui ninguém te socorre; 
E quem cai nas minhas unhas 
Apanha, deserta ou morre. 
Seu Romano, em vim a Patos 
Pela fama do senhor, 
Que me disseram que era 
Mestre e rei de cantador; 
E que dentro de um salão 
Tem discurso de doutor. 
Inaço, que andas fazendo 
Aqui nesta freguesia, 
Cadê o teu passaporte, 
A tua carta de guia 
Aonde tá teu sinhô 
Cadê a tua famia. 
Seu Romano, eu sou cativo, 
Trabalho para meu sinhô... 
Quando vou para uma festa 
Foi ele quem me mandou, 
E quando saio escondido 
Ele sabe pronde eu vou.
Inaço, deixa-te disto, 
Não te possa acreditá 
Pois eu também tenho nego 
E só mando trabaiá... 
Como é que teu sinhô 
Vai te mandá vadiá? 
Inaço da Catinguera, 
Escravo de Mané Luiz 
Tanto corta com risca, 
Como sustenta o que diz! 
Sou vigaro capelão 
E sacristão da matriz. 
Este aqui é seu Romano 
Dentaria de elefante, 
Barbatana de baleia, 
Força de trinta gigante, 
É ouro que não mareia, 
Pedra fina e diamante. 
Inaço da Catinguera 
É nego desengonçado: 
Abre cacimba no seco 
Dá em baixo do muiado... 
Aperta sem sê troquês, 
Corta pau sem sê machado. 
Romano, o meu martelo, 
Por bom ferreiro é forjado; 
Tanto ele é bom de aço, 
Como está bem temperado; 
A forja onde ele foi eito 
É toda de aço blindado. 
Seu Romano, eu lhe garanto 
Que resisto ao seu martelo; 
Ao talho do seu facão, 
Ao corte do seu cutelo; 
Se eu morrer na peleja, 
Lhe vencerei no duelo. 
Negro criado vadio 
Tem por fim acabar má; 
Uns casam com mulher forra 
Outros dão pra roubá. 
Outros fogem do serviço 
Com medo de trabalhá. 
Eu felizmente não sou 
Escravo de senhor cru, 
Que trabalha todo o dia 
De noite faz quinguingu 
Aparpando no escuro 
Fossando que nem tatu. 
Estou ouvindo as tuas loas, 
Não te possa acreditar. 
Que eu também tenho escravo 
Mas não mando vadiar, 
Que eu saio pra divertir 
Os negros vão trabalhar. 
Seu Romano, sou cativo, 
Mas trabalho no comum. 
Dar descanso a seus escravos 
É gosto de cada um 
Meu sinhô tem muito negro, 
Seu Romano só tem um. 
Pra negro eu tenho chicote 
E palmatória e trabuco. 
Boto-o na mesa do carro 
Passo por cima e machuco 
Vadeio de lá pra cá: 
Traco-traco! Truco-truco! 
Seu Romano, meu facão 
Também trabalha em seu quengo! 
Desmastreio-te a carreira 
Como um cavalo de rengo 
E vou de uma banda pra outra 
Traco-traco! Tengo-tengo! 
Negro, se eu te pegar 
Numa volta de caminho 
Eu te faço um agrado, 
Com meu chicote um carinho 
Se a camisa for nova 
Só te deixo o colarinho. 
Sou abelha de ferrão 
Sou besouro de caboclo, 
Se eu pegar seu Romano, 
Dou um arrocho, deixo-o rouco 
De quebrar-lhe as canelas 
Só deixar-lhe dois catoco. 
Negro você não me venha 
Que se vier eu lhe abeco 
Sacudo-o em cima da forja, 
Com os fole eu te sapeco, 
Boto-te em cima da safra, 
Com dois malhos, teco-teco! 
Seu Romano, não se alegre 
Que a hora não acabou-se. 
Eu derrubo de machado, 
Acabo, pico de foice. 
Valentão que vir a mim 
Mato-o de queda e de coice.
Negro se tu me cercares 
Com quatrocentos caifai 
Cem de uma banda, cem de outra 
Cem adiante, cem atrai 
Isto é que é tapa que dou 
Isto é que é nego que cai. 
Seu Romano fazê isso 
Té arriscado a passar má 
Vai o chumbo, vai a bala 
Vai o nó do caruá. 
Dá-lhe os nego, dá-lhe as nega 
E os molequim também dá.
Romano Na minha não passa 
Negro sem carta de guia 
Boto-lhe o surrão abaixo 
Para fazer vistoria 
Se é cativo ou se é liberto 
Se é casado e tem famia. 
Seu Romano, a fazer isto 
Certamente passa má 
Vai a bala, vai o chumbo, 
Vai a corda de crauá 
Dá-lhe os negro, dá-lhe as negra 
Dá-lhe tudo, tudo dá. 
Romano da Catingueira 
Madeira do Piancó 
Eu boto-lhe no meu machado 
E tiro-a toda no pó 
Boto-lhe a régua em cima 
E desempeno de enxó. 
Seu Romano carapina, 
Carregue boa ferrage 
Sou braúna, angico torto 
Sou pedra mármore, em lage, 
Sou lagedo, penedia, 
Logo seu ferro é bobage. 
Romano, olha que eu tenho 
Força e muita inteligência, 
Não me falta no meu estro 
A veloz reminiscência; 
Muitas vezes tenho dado 
Em cantador de ciência. 
Seu Romano eu só garanto 
É que ciência eu não tenho, 
Mas para desenganá-lo 
Cantar consigo hoje venho; 
Abra os olhos, cuide em si, 
Pra não perder seu desenho. 
Inaço faça um favô 
Me diga lá num repente 
Qual é a dor que mais dói, 
Que mais atormenta a gente. 
Eu penso que o panariço 
É dorzinha impertinente; 
Mas porém tem muitas outra 
Que eu lhe digo, no repente: 
Ferroada de lacrau 
Faz o pé ficar dormente; 
Tem outra dô condenada, 
É pisá-se em brasa quente. 
Sou que nem dois telegrama: 
Quando um assobe outro desce... 
Inaço, você me diga, 
Que nunca achei quem dissesse, 
Qual é a erva do mato 
Que o próprio cego conhece. 
Neste negócio de mato 
Sou quase decurião... 
Corto o baraio onde quero, 
Dou carta e jogo de mão; 
No mato tem uma erva, 
Queima e arde como o chão, 
O próprio cego conhece: 
É urtiga ou cansação. 
Inaço, se és tão sabido, 
Responda sem estudá, 
Qual é o tranze da vida 
Que mais nos faz apertá, 
Que até nos tira a alegria, 
O jeito de conversá, 
O sono durante a noite, 
A vontade de almoçá. 
Seu Romano me parece, 
Eu que não sou aprendido, 
É quando morre a mulhé, 
Ou quando morre o marido, 
Nosso pai ou nossa mãe, 
O nosso filho querido, 
Quando chega em nossa porta 
Um credô aborrecido. 
Tomara achar quem me mostre 
Uma casa sem Maria, 
Mês que não tenha semana, 
Uma semana sem dia, 
Altá de igreja sem santo, 
Vigaro sem freguesia, 
Moça nova sem namoro 
E véia sem ser titia. 
Eu nunca vi filho único 
Que não fosse preguiçoso! 
Quem anda com guarda-costa 
Não é valente, é medroso! 
O homem se faz por si, 
Ninguém nasce poderoso! 
O pobre fica maluco, 
O rico fica nervoso... 
Há certas coisas na vida 
Que, se dando, é raridade: 
Menino não querê leite, 
Soldado ter castidade, 
Rapariga sem enfeite, 
Gente sonsa sem maldade, 
Moça passar dos trint’anos, 
Dizer direito a idade. 
Há dez coisas neste mundo 
Que toda gente procura: 
É dinheiro e é bondade, 
Água fria e formosura, 
Cavalo bom e mulhé, 
Requeijão com rapadura, 
Morá sem ser agregado, 
Comê carne sem gordura... 
Quando eu era pequenino, 
No tempo em que eu vadiava, 
No lugá onde eu nasci 
A minha força eu mostrava: 
Não deixei pau pra semente, 
Pela raiz eu cortava. 
Nunca vi ninguém no mundo 
Indigestá sem cumê, 
Navio corrê no seco, 
Atolero sem chuvê... 
Também nunca vi no mundo, 
Por isso queria vê 
Tirá pau pela raiz 
Só vendo é que posso crê: 
Só se era mata-pasto, 
Canapum ou muçambê. 
O pau que eu tirá de foice, 
Tu não tira de machado; 
No mato que eu entrá nu, 
Cabra não entra encourado; 
Barbatão que eu pegá solto 
Botas no mato, peado. 
Seu Romano inda não viu 
O tamanho do meu roçado: 
Grita-se aqui num aceiro 
Ninguém ouve do outro lado, 
Eu faço coisa dormindo 
Que outro não faz acordado, 
O que o sinhô fizé em pé 
Eu faço mesmo deitado. 
No lugar onde eu campeio 
Tu mesmo não tira gado; 
Faço figura no limpo 
Faço mió no fechado 
No poço que eu tomá pé 
Você morre é afogado. 
Coisa que eu faço no mato 
Ninguém faz no tabolero 
O que o branco faz no duro 
eu faço num atolero; 
O que faz no mês de março 
Eu tenho feito em janeiro, 
O branco bem amontado 
O nego em qualquer sendeiro 
A concessão que lhe faço 
É correr no meu acero 
Embora o diabo lhe ajude 
Eu derrubo o boi primeiro. 
Eu já tenho dado em touro 
Que quando ronca estremece 
Tenho domado leão 
Até que ele me obedece; 
Já dei em muitos cantores 
Mas nunca achei quem me desse! 
Com touros e com leões 
Seu Romano já brigou 
Mas se o povo se acalmar 
Eu hei de mostrar quem sou 
Quero dar em seu Romano 
Que diz que nunca apanhou.
Se você vê que não pode
Comigo, é bom que se aquete: 
Enquanto derrubá um, 
Eu despacho mais de sete!
O que você faz de espada 
Desmancho de canivete... 
O senhor nunca me viu 
Frangi o couro da venta, 
Meu cabelo se arpoá 
E a testa ficar cinzenta... 
Cantadô, quando eu me agasto, 
Esfria com água benta. 
Quando pego um cantador, 
Adoece de repente, 
Dá-lhe uma dor de cabeça 
E uma coceira ardente 
É um vexame tão grande
Que não há diabo que agüente. 
Meu martelo tem azougue 
Cantador dele não sai, 
Dá-lhe um frio com tontura, 
Seca a carne a língua cai, 
Fica o corpo sem governo 
A alma vai-e-não-vai. 
Inaço, tu tem cabeça 
Porém juízo não tem! 
Um gigante nos meus braços 
Aperto não é ninguém! 
Aperto um dobrão nos dedo 
Faço virar um vintém. 
Tem coisa que dá vontade 
Me meter na vida alheia: 
Quem mata assim tanta gente 
Inda não foi pra cadeia! 
Pegá um gigante à mão 
E não ficá ca mão cheia! 
Rebentar dobrão nos dedo 
E não quebrá uma veia: 
Esse dobrão é de cera, 
Esse gigante é de areia...
Inaço, fica sabendo 
Que sou rei nesta ribera! 
Tá me dando uma veneta 
Fazê uma brincadera: 
Eu quero mudá-te o nome 
De Inaço da Catinguera... 
Desse pau tão duro e forte 
Eu faço burra leitera 
E se me dé na cabeça 
Faço virá bananera... 
O branco mais muita gente, 
O negrinho mermo só, 
O branco vem de cacete, 
E eu recebo a cipó... 
No pau que fizé entalha 
Eu lavro sem deixá nó: 
O branco corta a machado, 
Eu lavro mermo de enxó...
Romano da Catingueira 
Se mete a cantar repente, 
Negro me trata melhor, 
Que estamos em meio de gente 
Queira Deus você não saia 
Da sala de couro quente. 
Meu branco dou-lhe um conselho, 
Espero o sinhô tomar, 
Se tire desse sentido, 
Se arrede desse pensar, 
Juro com todos os dedo 
Que um homem só não me dá. 
Inaço da Catinguera 
Fala como uma folhinha... 
Não quero escutá bobage, 
Guarda a tua ladainha, 
Não és pra me dá conselho: 
Quando tu ia eu já vinha... 
Seu Romano, eu pra cantá 
Não preciso passaporte... 
É um dom da natureza 
Um favor da minha sorte! 
Em negócio de cantiga 
Tenho feito muita morte. 
Negro, se tu pretendes
Contra mim te armar em guerra, 
Verás eu tirar-te a vida, 
Deixar-te inerte, na terra, 
E botar no teu cadáver 
Serra por cima de serra. 
Seu Romano, eu tenho visto 
Cantor que diz que é sabido, 
Vir pelejar contra mim 
Mas quando se ver perdido, 
Chora pedindo desculpas 
Dizendo: estava iludido. 
Negro, as tuas façanhas 
Eu delas não faço conta, 
Tu te opondo contra mim 
Dás murro em faca de ponta; 
Eu monto no teu cangote 
Mas no meu ninguém se monta. 
Seu Romano não faz conta 
Porém eu hoje desmancho 
Tudo o que o sinhô fizer: 
Toco-lhe fogo no rancho, 
Cuide em si que o negro velho 
Dá-lhe um serviço de gancho.
Inaço, tu nunca viste 
Eu mais meu mano em serviço. 
Somo como dois machados, 
No tronco de um pau maciço; 
Um é raio abrasador, 
Outro é trovão inteiriço. 
Eu bem sei que seu Veríssimo 
No martelo é rei c’roado; 
Mas, leve ele à Catingueira 
Muito bem apadrinhado, 
E verá como é que apanha 
O padrim e o afilhado. 
Coitadim de Catingueira 
Aonde vei se socar, 
Dentro de uma mata escura 
Onde não pode enxergar, 
Ele vei por inocente, 
Não volta sem apanhar. 
Coitadim de seu Romano, 
Aonde ele vei caí, 
Nas unhas de um gavião, 
Sendo ele um bentivi, 
Está se vendo apertado 
Como peixe no jiqui. 
Romano quando se zanga 
Treme o Norte, abala o Sul 
Solta bomba envenenada 
Vomitando fogo azul 
Desmancha nego nos are 
Que cai virado em paul.
Inaço quando se assanha 
Cai estrela, a terra treme, 
O Sol esbarra o seu curso, 
O Mar abala-se e geme, 
Pega fogo o mundo em roda 
E nada disso o nego teme. 
Hoje aqui tem de se ver 
Relampos de caracol, 
Os nevoeiros pararem 
E eclipsar-se o Sol; 
Secarem as águas do Mar, 
Pescar baleia de anzol. 
Hoje aqui tem de se ver 
Como o ferreiro trabalha, 
Como se caldeia ferro, 
Como o aço se esbandalha; 
Como se broqueia pedra, 
Como se estoura a metralha. 
Meu Deus, o que tem 
Que no cantar se atrapalha? 
Sustenta o ferro na mão, 
Que estou na primeira entalha, 
Teu ferro está se virando 
E o meu não mostra falha. 
Meu Deus, que tem seu Romano 
Parece que está doente? 
Está temendo a desfeita, 
Ou o bote da serpente, 
Ou está com medo de 
Ou com vergonha da gente. 
Inaço, tenho cantado
Com muita gente de tino; 
No sul com Manoel Carneiro, 
No Sabugi com Ugolino, 
Como não canto contigo 
Que és fraco e pequenino?
Seu Romano, abra os olhos 
Com esse preto moreno 
Tenha medo da botada 
Da serpente e do veneno; 
Eu já tenho visto grande 
Apanhar dum mais pequeno. 
Negro, ainda me abalo
Lá da serra do Teixeira, 
Levo meu mano Veríssimo 
Vamos dar-te uma carreira, 
Dar-te uma surra em martelo 
E tomar-te a Catingueira. 
Meu branco, dou-lhe um conselho 
Se voimincê me atende; 
Se for para nós brincar 
Pode ir que não me ofende 
Mas pra tomar Catingueira 
Não vá não que se arrepende. 
Negro, tu me conheces, 
Já sabes bem eu quem sou; 
Mas quero te prevenir 
Que na Catingueira eu vou 
Derrubar o teu Castelo 
Que nunca se derrubou. 
É mais fácil um boi voá 
Um cururu ficar belo, 
Aruá jogar cacete 
E cobra calçar chinelo, 
Do que haver valentão 
Que derrube o meu Castelo. 
Quem quer ferir inimigo 
Não faz ponto nem avisa; 
Quando eu for à Catingueira, 
Nesse dia o sol se incrisa; 
Inda vou lá, fique certo, 
Somente dar-te uma pisa.
Me diga o dia em que vai, 
Quais são os seus companheiros. 
O senhor pode levar 
Dez ou doze cangaceiros; 
Que a todos eu saio a peito 
Como um valente guerreiro. 
Antes de eu ir, outro dia, 
Te mandarei um aviso 
Você, tando em casa, corre 
Porque você tem juízo... 
E eu vou só fazê estrago: 
Quebro, rasgo, queimo e piso! 
Quando for procure um padre 
Que o ouça em confissão, 
Deixa a cova bem cavada 
E deixe a encomendação 
Leve a rede onde é de vir 
E já prontinho o caixão. 
Inaço, eu sei que é duro, 
Mas é lá na Catingueira 
Na Mãe d’água, onde eu moro, 
Não descambas a ladeira. 
Mais fácil o diabo ir ao Céu 
Do que ires ao Teixeira. 
Meu branco não diga isso 
Que o sinhô não me conhece 
Veja quando o Sol sair 
Com a luz que resplandece 
Olhe para os quatro lados 
Que o negro velho aparece.
Negro, eu só canto contigo 
Por um amigo me pedir 
Visto me sacrificar, 
Não me importa de ferir... 
Cavo onde achar mais mole 
E bato enquanto bulir. 
Seu Romano, lhe aconselho, 
Não cometa tal perigo, 
a Deus que lhe defenda 
Do laço do inimigo, 
Antes morrer enforcado 
Do que pelejar comigo. 
Negro, canta com mais jeito, 
Vê a tua qualidade. 
Eu sou branco, tu um vulto 
perante a sociedade. 
Eu em vir cantar contigo 
Baixo de dignidade. 
Esta sua frase agora 
Me deixou admirado... 
O sinhô para ser branco, 
Seu couro é muito queimado, 
Sua cor imita a minha, 
Seu cabelo é agastado. 
Com negro não canto mais 
Perante a sociedade. 
Estou dando cabimento 
Ele está com liberdade. 
Por isso vou me calar, 
Mesmo por minha vontade. 
O sinhô me chama negro, 
Pensando que me acabrunha. 
O sinhô de home branco 
Só tem os dente e as unha, 
A sua pele é queimada, 
Seu cabelo é testemunha. 
Inaço, eu estou ciente 
Que tu és um negro ativo; 
Mas não estou satisfeito, 
Devo te ser positivo: 
Me abate hoje em cantar 
Com um negro que é cativo. 
Na verdade, seu Romano, 
Eu sou negro confiado! 
Eu negro e o sinhô branco 
 Da cor de café torrado! 
Seu avô vei ao Brasil 
Para ser negociado. 
Negro, eu vou te pedir, 
Vamos deixar o passado, 
Esquecer quem foi cativo, 
Que nos dá mais resultado. 
Acabar a discussão 
Esquecer todo o atrasado. 
Isso aí é outra coisa. 
Eu não luto sem motivo. 
O sinhô também esqueça 
O povo que foi cativo. 
Quem tem defunto ladrão 
Não fala em roubo de vivo. 
A desgraça do home rico 
É dar importância a pobre. 
Sendo eu a prata fina 
Vim me misturar com cobre. 
Grande castigo merece 
Quem se abate sendo nobre. 
Esta agora é engraçada, 
Eu digo com toda fé: 
De prata se faz arreio, 
Faz faca, garfo e cuié, 
De prata se faz espora 
Pra negro botar no pé.
Já faço tu te calar 
Não quero articulação. 
Vamos à geografia 
Que chama o povo à atenção. 
Vê se sabes ou se podes 
Me dar uma explicação. 
Seu Romano, ainda me lembro 
Que meu sinhô me dizia 
Que o mundo tem cinco partes, 
É Ásia e Oceania, 
Europa, América e África, 
Assim diz a geografia. 
Então deves conhecer 
Cabos, estreiros e mar, 
Os golfos, as raças todas 
Onde puderam habitar. 
Afina tua memória 
Que eu quero te perguntar. 
Não respondo sua pergunta, 
Não conheço academia, 
Vivo só do meu roçado, 
Nunca vi uma livraria. 
Vá perguntar a um doutô 
Que é quem sabe geografia. 
Meu Deus, que tem esse negro 
Que no cantar se maltrata! 
Agora Romano velho 
Canta um ano e não se mata; 
Quanto mais canta mais sabe 
E nó que dá ninguém desata. 
Eu bem sei que seu Romano 
Tá na fama dos anéis; 
Canta um ano, canta dois, 
Canta seis, sete, e dez; 
Mas o nó que der com as mãos 
Eu desmancho com os pés. 
Inaço, vamos parar, 
Estou com dor de cabeça. 
Preciso de algum repouso 
Antes que o dia amanheça. 
Estou com cara de sono 
Sem ter mais quem me conheça. 
Sua doença, seu Romano, 
Está muito conhecida. 
Melhor rasgar o tumor 
Antes que vire ferida. 
O reis por perder o trono 
Não deve perder a vida. 
Latona, Cibele, Réa, 
Íris, Vulcano, Netuno, 
Minerva, Diana, Juno, 
Anfitrite, Androcéia, 
Vênus, Climene, Amaltéia, 
Plutão, Mercúrio, Teseu, 
Júpiter, Zoilo, Perseu, 
Apolo, Ceres, Pandora, 
desata, agora, 
O nó que Romano deu. 
Seu Romano, desse jeito 
Eu não posso acompanhá-lo. 
Se desse um nó em martelo 
Viria eu desatá-lo 
Mas como foi em ciência 
Cante só que eu me calo.
...Fim...

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